‘Zona de Interesse’ evoca a banalidade do mal no cotidiano


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Filme do diretor inglês Jonathan Glazer e candidato ao Oscar, ‘Zona de Interesse’ imerge o espectador através do indispensável design de som

Uma das “funções” mais nobres do Cinema é a de nos apresentar a lugares e perspectivas diferentes das nossas, principalmente quando nos faz imergir em situações com as quais sequer imaginamos um dia experimentar.

Se o filme tiver a sorte de contar com um bom diretor que nos facilite o exercício da empatia imersiva a ponto de nos colocar no lugar de personagens ou situações raras, é sinal que temos algo muito precioso diante de nós, afinal somos seres naturalmente movidos pela curiosidade. Esse exercício imersivo pode ser prazeroso ou incômodo, a depender das intenções de cada obra.

Nesse sentido,  Zona de Interesse (baseado no livro de Martin Amis) do talentoso diretor inglês Jonathan Glazer – conhecido pelo filme de ficção Sob a Pele (2013), e por dirigir os melhores videoclipes de bandas como: Radiohead, Blur, Jamiroquai, U.N.K.L.E., Massive Attack, etc. -, é capaz de causar forte incômodo ao propor um exercício de imersão bastante doloroso. Um exercício que depende muito mais daquilo que ouvimos do que daquilo que vemos.

Essa imersão nos mostra, em um belíssimo primeiro plano, a rotina ordinária de uma família cujo patriarca é um comandante nazista de um campo de concentração. A casa na qual eles moram, com seus belos jardins floridos, piscina para as crianças se divertirem, área gourmet sempre farta, acesso próximo ao rio, etc., fica bem ao lado do gigantesco campo de concentração de Auschwitz, que por sua vez, não é mostrado internamente e nem precisa ser. Afinal, mesmo com os muros altos que compõem a opressora paisagem ao redor da casa, nada impede que toda a violência genocida aplicada ali possa ser claramente ouvida pelos ocupantes da casa o tempo inteiro em alto e bom som.

O pequeno recorte espacial do filme é mostrado pelo viés do distanciamento e da frieza de um estudo clínico, como se estivéssemos a observar cobaias num laboratório. Mas como, diante de um quadro de tamanha frieza, o diretor consegue causar tamanha imersão? A resposta é muito simples: o design de som.

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Sandra Hüller em ‘Zona de Interesse’ (2023)

Marcelo Gomes, diretor de filmes como Cinema, Aspirinas e Urubus afirmou em certa ocasião: “O cinema é som e imagem. É som e imagem mesmo se a tela estiver escura, mesmo se houver silêncio… Gosto de trabalhar o som do extracampo, o que está fora da imagem. Algo que você pode ouvir e contribui para a atmosfera da imagem. O som mexe com a imaginação do espectador, com aquilo que ele não vê, apenas ouve”.

A certa altura de Zona de Interesse, de tanto ouvir o sofrimento alheio do outro lado do muro, a personagem da sogra do comandante – que funciona como se fosse os nossos olhos ali naquele meio – não consegue estender sua visita por muito tempo. A imensa fumaça da chaminé do potente forno, capaz de cremar quase 500 pessoas de vez, a faz tremer, enquanto outros personagens se preocupam apenas em tirar as roupas do varal e fechar janelas.

A “fuga” da personagem da sogra, inteligentemente, serve para ampliar a sensação de desconforto, pois o filme não nos dá opção de fugir dali. Estamos presos, testemunhando o desdém de outras testemunhas coniventes com um dos maiores crimes contra a humanidade. Uma conivência que vem da suposta inviolabilidade da zona de interesse daquelas pessoas.

Uma zona que garante a continuidade de privilégios. Uma zona que advém também do temor incontestável à autoridade militar, a mesma zona perigosa que dessensibiliza ao pregar a desigualdade das raças, direitos e crenças, a mesma dessensibilização que experimentamos quando deixamos de nos incomodar se hoje existem pessoas morrendo de fome no mundo e nem sequer percebemos, a menos que sejamos nós mesmos, os famintos.

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O filme pode até pecar um pouco com suas metáforas óbvias na cena final, mas as intenções continuam condizentes com a proposta inicial de incomodar, ao nos dar um exemplo prático de que continuamos os mesmos e que apenas varremos a sujeira do passado para debaixo do tapete. O vômito que o comandante nazista verte na escadaria durante uma festa se tornou “invisível” com o tempo e pode até passar despercebido, mas se andarmos por ali distraídos, ainda é capaz nos fazer rolar escada abaixo.

CLIQUE PARA ASSISTIR AO TRAILER

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FICHA TÉCNICA E MAIS INFORMAÇÕES:

TÍTULO ORIGINAL: The Zone of Interest
ANO: 2023
GÊNERO: Drama, Guerra, História
PAÍS: Estados Unidos, Reino Unido, Polônia
IDIOMA: Alemão, Polonês e Iídiche
DURAÇÃO: 1:45 h
CLASSIFICAÇÃO: 14 anos
DIREÇÃO: Jonathan Glazer
ROTEIRO: Jonathan Glazer (baseado no livro de Martin Amis)
ELENCO: Christian Friedel, Sandra Hüller, Johann Karthaus e outros
AVALIAÇÕES: IMDB

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