Em ‘O Menino e a Garça’, Miyazaki entrega um melancólico registro autobiográfico


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Filme de Hayao Miyazaki, ‘O Menino e a Garça’ é o filme mais autobiográfico do diretor japonês

“- Você veio de lá de cima, do mundo dos vivos, não é?
– Sim, como soube?
– Olhe em volta (apontando para inúmeros barcos à vela fechando o horizonte do mar). A morte está sempre te rondando.”

Este diálogo ganha um peso extra quando percebemos que um dos personagens seria a representação da própria infância do diretor Hayao Miyazaki, hoje com 83 anos, que após uma carreira consolidada e mundialmente reconhecida como uma das maiores referências da animação de todos os tempos, tem se despedido a cada novo trabalho. O discurso do “esse será meu último filme”, vem sendo utilizado por ele de forma recorrente, mas nunca fez tanto sentido quanto agora.

O Menino e a Garça é o retorno triunfal de Miyazaki após um hiato de dez anos, e seus simbolismos e reflexões filosóficas dão o tom melancólico da possível despedida de um gênio, que aqui mistura realismo e fantasia para se partir representativamente em dois personagens, o jovem e o ancião, na tentativa de se entender em meio ao turbilhão desse processo criativo artesanal e árduo – a animação clássica em 2D – que ele sempre lindamente abraçou como forma de se expressar artisticamente e de se comunicar com o mundo.

Os temas aqui tratados são tantos e tão diversos que poderiam render outros dez filmes e isso pode causar até uma certa confusão, mas tudo se amarra e se justifica quando lembramos que, Miyazaki – o criador – não tem mais tanto tempo assim. Embora sua obra seja eterna, ele não é, e demonstra ter plena consciência disso.

Na trama, acompanhamos Mahito, um garoto que perde a mãe em um incêndio no hospital de Tóquio durante a Segunda Guerra Mundial. Pouco tempo depois ele se muda com o pai para a casa de campo de sua tia. Chegando lá, descobre que a tia não só se tornou sua madrasta, como está carregando seu meio irmão no ventre.

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Enfrentando problemas de adaptação, sentindo um luto silencioso desesperador – manifestado através de pesadelos recorrentes com a morte da mãe -, e percebendo que as coisas estão todas fora do devido lugar, Mahito clama por atenção, enquanto sua madrasta adoece por conta de complicações na gravidez.

Neste momento, eis que o excesso de realismo autobiográfico de O Menino e a Garça começa a ser quebrado por situações totalmente estranhas como uma garça bizarra que começa a perseguir e atacar Mahito insistentemente. O mundo real parece desvanecer à medida que Mahito decide adentrar a floresta ao redor da casa e desbravar seus mistérios.

A vida precisa seguir adiante e alguns lugares precisam ser abandonados, como um último olhar que lançamos para um quarto vazio antes de fecharmos a porta

Então, embarcamos nessa viagem que encanta e ao mesmo tempo aterroriza ao cruzarmos a linha entre o real e a fantasia, entre a criança e o velho, entre o mundo dos vivos e o além. Tudo isso para Miyazaki nos dizer que sua arte não teria outra explicação a não ser pela inspiração vinda de outros planos.

Quando o mundo natural e o sobrenatural se cruzam é que finalmente vislumbramos pela primeira vez o personagem do ancião, o segundo personagem no qual Miyazaki se permite ser representado em O Menino e a Garça. Interessante notar que somente quando os dois se encontram, o velho e a criança, e começam a dialogar, é que a verdadeira intenção do filme se revela.

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Afinal, o ancião é o criador responsável pela existência daquele e de outros infinitos mundos. Ele é responsável também por manter tudo em equilíbrio, inclusive o Bem e o Mal. Porém, após longos e exaustivos anos de trabalho, o equilíbrio não se faz mais possível. É necessário que o novo venha, traga novas peças e assuma o seu lugar para que os mundos criados não morram.

Quando o personagem do ancião diz: “alguém de meu próprio sangue precisa colocar uma peça nova na torre para que tudo não desmorone”, subjetivamente, podemos supor que O Menino e a Garça seria um poético e urgente pedido de socorro de Miyazaki para que alguém de sua família assuma o seu trabalho e leve adiante o seu legado no estúdio Ghibli, do qual é sócio fundador.

+++ Leia a crítica de ‘Your Name’, de Makoto Shinkai

Indicado pela quarta vez ao Oscar de Melhor Animação, vencedor em 2003 com A Viagem de Chihiro, e do Oscar Honorário em 2015 pelo conjunto de sua obra, o mestre Hayao Miyazaki sabe que independente de qualquer coisa, a vida precisa seguir adiante e alguns lugares precisam ser abandonados, como um último olhar que lançamos para um quarto vazio antes de fecharmos a porta.

CLIQUE PARA ASSISTIR AO TRAILER

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FICHA TÉCNICA E MAIS INFORMAÇÕES:

TÍTULO ORIGINAL: Kimitachi wa dô ikiru ka /
The Boy and the Heron
ANO: 2023
GÊNERO: Drama, Aventura, Animação
PAÍS: Japão
IDIOMA: Japonês
DURAÇÃO: 2:04 h
CLASSIFICAÇÃO: 12 anos
DIREÇÃO: Hayao Miyazaki
ROTEIRO: Hayao Miyazaki
ELENCO: Soma Santoki, Masaki Suda, Ko Shibasaki, Yoshino Kimurae outros
AVALIAÇÕES: IMDB

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