“Hallelujah”, de Leonard Cohen, uma canção entre o Sagrado e o Profano


Leonard Cohen fotografado em Oslo, Noruega
Crédito: Antonio Olmos / eyevine / Redux

“Hallelujah”, ou na forma latina “Aleluia”, é um grito de louvor que vem do hebreu. É uma expressão tradicionalmente usada como forma de agradecimento a Deus. Aparece 24 vezes no Velho Testamento e é uma junção de “Hallelu” (הַלְּלוּ), que é traduzido como “Louvai! Adorai!” ou “Elogio”, e “Yah” (Jah) (יָהּ), uma forma abreviada do nome de Deus na tradição judaica.

Quando o compositor canadense Leonard Cohen usou a palavra “Hallelujah” como parte do refrão em cadência catártica de seus versos de canção popular, era difícil determinar como a música interferiria no lugar dessa expressão ancestral no imaginário coletivo. Toda a história da canção se confunde com a história do autor – cheia de nuances e interseções entre o sagrado e o profano – para então dizer muito sobre como um produto cultural pode virar organismo vivo na memória popular.

Leonard Cohen nasceu em uma família judia ortodoxa em Westmount, Quebec – no Canadá. Ele descreveu sua infância como “messiânica”, pelo modo em que seus familiares estavam profundamente envolvidos na fé judaica. O sobrenome “Cohen”, inclusive, vem de “kohen”, palavra em hebreu para padre. Quando criança, Leonard era dito ser o descendente de Aarão, uma linhagem de ordem alta de padres na tradição dos judeus.

Durante o ensino médio, Cohen se viu interessado em poesia e literatura – influenciado principalmente pelo poeta Irving Layton, seu mentor. Leonard teve seus primeiros poemas publicados em 1954 e seu primeiro livro de poemas lançado em 1956, o Let Us Compare Mythologies (Vamos Comparar Mitologias, em tradução livre). Ao redor de toda a sua bibliografia, Leonard Cohen explorou os limites entre o sagrado e o secular através de versos e prosas. A busca incansável pelo divino se misturava com os devaneios provenientes do amor e do desejo carnal enquanto ele se estabelecia como escritor na cena contra cultural do Canadá.

Em seu romance Beautiful Losers (Belos Perdedores), Cohen traz a santa canadense do Século XVII Catherine Tekakwitha como participante de um triângulo amoroso. No livro, Leonard faz uso de diversas formas de linguagem em um texto cheio de alusões e simbolismo. O misticismo foi abertamente usado como tema junto aos excessos sexuais – reflexos da era da Revolução Sexual dos anos 60 quando foi publicado. Mesmo assim, o romance escandalizou a imprensa e encontrou problemas para ser publicado. Quando finalmente foi lançado, apesar das controvérsias e da relutâncias de editores, Cohen respondeu com uma carta que caçoava e afrontava os críticos vocais da obra.

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Leonard Cohen com sua esposa Suzanne Elrod e os filhos, em 1976

Apesar de conhecido na cena literária local, Leonard Cohen se frustra com sua carreira de escritor. Ele então se muda para os Estados Unidos para buscar tornar-se músico na profusão dos chamados cantores-compositores que formavam a cena da música Folk dos anos 60. Apresenta em uma de suas primeiras canções, “Suzanne” o tema da procura incessante do divino em meio ao mundo material. Tema, que como vimos, tem traços fortes em sua trajetória como escritor, e que atingirá seu ápice na canção aqui discutida, “Hallelujah”.

“Suzanne”, música primeiro publicada como poema em 1966, e então, gravada como canção em 1967, tem como foco a relação de amor platônica de Leonard com Suzanne, sua musa. Nela, o canadense que já tinha 31 anos, escreve:

“And Jesus was a sailor
When he walked upon the water
And he spent a long time watching
From his lonely wooden tower (…)

And you want to travel with him
And you want to travel blind
And you think maybe you’ll trust him
For he’s touched your perfect body with his mind”

(“E Jesus era um marinheiro
Quando ele andou pela água
E passou um longo tempo observando
De sua solitária torre de madeira […]

E você quer viajar com ele
E você quer viajar cego
E você acha que pode confiar nele
Por ele ter tocado seu corpo perfeito com sua mente”)

Nos versos, Leonard expressa o desejo sexual em uma simbologia com a figura humana de Jesus Cristo. Cohen traz a imagem de Jesus como um marinheiro que atinge de maneira mística e secular o eu lírico.

Leonard Cohen escreve com formas de linguagem similares ao redor de sua então bem sucedida carreira de músico no fim dos anos 60 e início dos anos 70. Em “Lover, Lover, Lover”, do álbum New Skin For the Old Ceremony, de 1974, conclama Deus como “amante” no refrão.  Foi, porém, depois de experiências mal sucedidas em seu álbum Death of a Ladies’ Man, de 1977, e após o álbum Recent Songs, de 1979, que Cohen sentiu a necessidade de inovar-se com a então nova década de 80.

Leonard Cohen em 1982 por Dominique Isserman
Leonard Cohen em 1982 por Dominique Isserman

O poeta que se tornou músico ficou sem gravar nada por cinco anos. Até que com um sintetizador Casio, começa a fazer experimentações que se tornariam composições de seu álbum Various Positions, de 1984, que marcou uma nova era na carreira de Leonard Cohen.

O álbum, que além de “Hallelujah”, trazia outro sucesso de Cohen, a valsa “Dance Me To The End of Love”, foi vetado pela sua então gravadora Columbia Records e ficou durante muito tempo sem ser lançado nos Estados Unidos. Walter Yetnikoff, presidente da companhia na época, disse algo como: “Olha, Leonard, eu sei que você é ótimo, só não sei se é bom o suficiente”.

Quando, finalmente, Leonard consegue lançar Various Positions pela pequena gravadora Passaport Records, o público tem a primeira oportunidade de acesso à primeira versão de “Halleluajah”. No documentário de 2022, Hallelujah: Leonard Cohen, A Journey, A Song, o produtor do álbum John Lissauer disse perceber logo no início das gravações a qualidade pop avassaladora da canção. Após o lançamento, porém, a canção passou desapercebida pelo gosto popular.

Bob Dylan, lendário cantor-compositor estadunidense foi um dos primeiros a notar a força da canção – a considerava “linda como uma oração” e fazia versões dela em seus shows. A própria versão de Cohen tinha peculiaridades e mudanças na letra quando ele a cantava nos palcos. Mudanças essas, que foram incorporadas na versão de John Cale para o álbum de tributo à obra de Leonard Cohen, I’m Your Fan, de 1991. Essa versão serviu de base para a profusão de versões de “Hallelujah” que viriam a se realizar.

Falando sobre as mudanças na letra, Leonard disse que “queria empurrar a canção para o mundo secular” em um sentido que se desvirtua da qualidade mais estritamente gospel da versão de estúdio. Agora, dos mais de 180 versos que Cohen já afirmou ter escrito para a canção, ela ganha uma estrutura onde o diálogo entre o sagrado e o profano é ainda mais explícito.

Pela sua história, “Hallelujah” tem uma faceta de mutação muito grande. Mutação de maneira a que a canção não é uma obra fechada nem mesmo para o seu autor – que passou por um processo criativo de anos para que a canção continuasse a ser reestruturada – tão pouco por outros artistas, que trazem suas únicas interpretações.

A versão do cantor estadunidense Jeff Buckley em seu primeiro e único álbum Grace, de 1994, é uma das versões mais conhecidas da canção. Nela, Jeff se baseia no cover de John Cale para elevar os versos à níveis etéreos. A voz de Jeff Buckley tem peculiaridades quase angelicais que acentuam os aspectos da ode ao sagrado de “Hallelujah” ao mesmo tempo em que eleva e destaca as nuances sexuais em suspiros.

Em 2004, a versão de Jeff Buckley foi classificada como número 259 na lista da Rolling Stone de “500 Melhores Canções de Todos os Tempos”. Muito usada em filmes e séries e em demais produtos de cultura de massa, Jeff não viveu para ver o sucesso da canção em sua versão que ainda tanto ecoa pela força quase simples da voz de Buckley com sua guitarra em devaneios de “Hallelujah”. A morte prematura de Jeff Buckley por afogamento em 1997 trouxe uma tragicalidade de passagem fúnebre para a sua apoteótica versão.

Leonard Cohen, falando de seu processo criativo, diz que “Uma vez que se reúne a força necessária para uma canção, essa força é indestrutível”. O poder mágico das canções se estende para o poder mágico das palavras na arte. É através da palavra que damos sentido a cultura. Significados só podem ser compartilhados pelo acesso à linguagem (HALL, 2016). “Hallelujah”, uma palavra ancestralmente carregada de grandes e místicos significados, ganha ainda maiores significados na canção de Cohen.

“Há diferentes formas de hallelujahs”, Cohen disse. “Existe um hallelujah religioso, mas existem vários outros. Quando alguém olha o mundo, há apenas uma coisa a dizer, e é hallelujah”. A própria palavra por si só tem grande significância sagrada na tradição judaica. De muitas formas, até mesmo mágica – como na kabbalah. Quando Leonard decide por circundar sua canção em conclamações de “hallelujah”, ele estabelece a constante cadência mágica de seus versos.

“I’ve heard there was a secret chord
That David played, and it pleased the Lord
But you don’t really care for music, do you?
It goes like this, the fourth, the fifth
The minor fall, the major lift
The baffled king composing ‘Hallelujah’”

(“Eu escutei que havia um acorde secreto
Que Davi tocava, e agradava ao Senhor
Mas você não se interessa por música, não é?
Ela vai assim: a quarta, a quinta
A queda menor, a subida maior
O confuso rei compondo ‘Hallelujah’”)

Cohen traz a figura bíblica do Rei Davi, considerado um santo pela Igreja Católica, e segundo a tradição do Velho Testamento, o segundo rei de Israel. Na canção, Davi aparece como um personagem iluminado pelo poder de uma canção que agrada Deus. Na forma de uma história com um diálogo direto com o interlocutor, Leonard Cohen se utiliza da metalinguagem ao mencionar a progressão de acordes da música: Dó, Fá, Sol, Lá menor e Fá. Já aqui, Davi aparece como um rei confuso e humano.

“Your faith was strong, but you needed proof
You saw her bathing on the roof
Her beauty and the moonlight overthrew you
She tied you to a kitchen chair
She broke your throne, she cut your hair
And from your lips she drew the Hallelujah”

(“Sua fé era forte, mas você precisava de prova
Você a viu se banhando do telhado
A beleza dela e o luar te derrubaram
Ela te prendeu a uma cadeira de cozinha
Ela quebrou seu trono, cortou seu cabelo
E de seus lábios ela tirou o Hallelujah”)

Leonard Cohen faz aqui uma alusão a história bíblica da tentação do Rei Davi, que ao ver Bate-Seba realizar seu banho de purificação, impressionou-se e foi a deitar-se com ela, o que era um pecado segundo o Deus de Israel. Há aqui também uma menção à história de Sansão e Dalila. A simbologia bíblica é utilizada de modo a preconizar o sofrimento amoroso masculino em relação à figura feminina. A palavra “hallelujah” se torna um suspiro de prazer carnal, em que o pecado, que aqui é figurativo, aparece em contraponto à experiência amorosa.

“Maybe I have been here before
I know this room, I’ve walked this floor
I used to live alone before I knew you
I’ve seen your flag on the marble arch
Love is not a victory march
It’s a cold and it’s a broken Hallelujah”

(“Talvez eu tenha estado aqui antes
Eu conheço esse quarto, eu andei nesse chão
Eu costumava viver sozinho antes de te conhecer
Eu vi sua bandeira no arco de mármore
O amor não é uma marcha de vitória
É um frio e partido Hallelujah”)

Na estrofe mais secular da canção, o eu lírico traz suas desilusões para com o amor na forma de uma linda linguagem poética. O tom pessimista se mostra no agora frio e partido Hallelujah.

“Well, there was a time when you let me know
What’s really going on below
But now you never show that to me, do ya?
But remember when I moved in you
And the holy dove was moving too
And every breath we drew was Hallelujah”

(“Bem, houve um tempo em que você me deixava saber
O que estava acontecendo aí embaixo
Mas agora você nunca me mostra isso, não é?
Mas se lembra quando eu me movi em você
E a pomba sagrada estava se movendo também
E todo suspiro que dávamos era Hallelujah”)

Nessa estrofe, Leonard Cohen usa figuras de linguagem para formar o ápice do teor sexual da canção. Isso sem deixar de oferecer ligações com o sagrado – onde o suspiro de Hallelujah vinha em um gemido de prazer no passado do eu lírico.

“Maybe there’s a God above
But all I’ve ever learned from love
Was how to shoot somebody who outdrew ya
And it’s not a cry that you hear at night
It’s not somebody who’s seen the light
It’s a cold and it’s a broken Hallelujah”

(“Talvez exista um Deus acima
Mas tudo o que eu aprendi com o amor
Foi como atirar em alguém que te desarmou
E não é um choro o que você ouve essa noite
Não é alguém que viu a luz
É um frio e partido Hallelujah”)

Leonard Cohen usa essa estrofe como maior peça de sua mistura de imagens seculares e sagradas. O amor divino é também o carnal e o terrestre. “Atirar em alguém que te desarmou” é uma das mais belas metáforas escritas sobre o amor. A salvação, porém, não chegou ao eu lírico, que deixa a música com o frio e partido Hallelujah.

Para além de seu lirismo, “Hallelujah” tem uma melodia cativante que a levou para casamentos, igrejas e programas de talento. Com mais de 300 versões em diferentes línguas, a canção existe para além de seu autor e até para além de seu conteúdo original. A música passou a ser usada em tantos produtos de mídia, que o próprio Leonard Cohen se mostrou incomodado. Certa vez disse que “acha que é uma boa canção, mas que muitas pessoas a cantam”.

“Hallelujah” é um grande e vibrante exemplo de canção que rapidamente atingiu o imaginário popular na Era da Informação. A canção está sob diferentes formas no subconsciente coletivo, e através da sua contínua história, ainda toca os corações que batem em diferentes partes do mundo. Onde, apesar da língua nativa, “Hallelujah” pode ser entoada e sentida da mesma forma.

REFERÊNCIAS

  1. Light, Alan (19 November 2013). The Holy or the Broken: Leonard Cohen, Jeff Buckley, and the Unlikely Ascent of “Hallelujah
  2. Hallelujah: Leonard Cohen, A Journey, A Song, documentário de Dan Geller e Dayna Goldfine
  3. Scott, A. O. (30 June 2022). “‘Hallelujah’ Review: From Leonard Cohen to Cale to Buckley to Shrek”. The New York Times
  4. Light, Alan (11 November 2016). “Leonard Cohen’s “Hallelujah”: Music’s Greatest Work in Progress”. Pitchfork. Archived
  5. Arjatsalo, J., Riise, A., & Kurzweil, K. “A Thousand Covers Deep: Leonard Cohen Covered by Other Artists”
  6. Ghomeshi, Jian (10 July 2009). “I’m blessed with a certain amnesia”. The Guardian
  7. Williams, P. (n.d.) Leonard Cohen: The Romantic in a Ragpicker’s Trade
  8. HALL, Stuart (org.) Cultura e Representação, 2016
  9. De Mesquita Benevides, Daniel (2018) Leonardo Cohen: entre a Bíblia e o Kamasutra
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1 Comment

  1. Nuno Santos
    20/11/2023

    Caro Gabriel, parabéns pelo texto! Tenho ideia que a versão do Cale não incorporou as peculiaridades e mudanças na letra quando o Cohen a cantava nos palcos. O Cale assistiu a um show do Cohen, gostou da canção e pediu ao Cohen para lhe enviar a letra. Depois de receber a letra (por fax), fez alterações e gravou sua versão para o I’m your fan, álbum de homenagem ao Cohen (aliás é o ponto alto desse álbum). O Cohen achou que o Cale tinha melhorado a canção e passou ele próprio a cantar a versão do Cale. O Jeff Buckley deve ter comprado o I’m Your Fan … e, a partir daí, é história

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