‘Oppenheimer’ é um mosaico sobre a desesperança de um homem diante de sua criação

– O que acham de lançarmos [a bomba atômica] em Kyoto?
– Ah não! Passei minha lua-de-mel lá e tenho ótimas recordações. Escolham outra cidade.

Assim como numa conversa aleatória de bar, alguns poucos generais, numa pequena sala fechada e com um poder de destruição em massa que não deveria sequer existir, decidem frivolamente sobre quais cidades japonesas receberão o recado de soberania armamentista dos EUA que reverberaria por todo o mundo e definiria as dinâmicas de poder da civilização como conhecemos até hoje.

Imerso em um gigantesco conflito moral silencioso e ao mesmo tempo ensurdecedor, em um canto esquecido desta mesma sala, está J. Robert Oppenheimer, físico teórico americano genial que dirigiu o Laboratório Nacional de Los Alamos durante a 2ª Guerra Mundial e que, junto a uma equipe de outros notáveis cientistas, acadêmicos e pesquisadores, trouxeram as primeiras bombas atômicas ao mundo.

O protagonista, interpretado com maestria pelo ator irlandês Cillian Murphy, parece carregar todo o peso de sua criação nos ombros, enquanto testemunha ela criar vida própria nas mãos dos generais. O orgulho e a empolgação inicial em relação ao projeto que iria ajudar os aliados a exterminar os nazistas e acabar com todas as guerras definitivamente, escapava do propósito inicial por entre os dedos de seu criador inevitavelmente.

Para traçar esse panorama humanamente difícil de ser explorado, o sempre grandiloquente e pretensioso diretor Christopher Nolan, da trilogia Batmam – Cavaleiro das Trevas, A Origem, Dunkirk, Amnésia, Interestelar, etc., dessa vez decidiu, acertadamente, focar menos no espetáculo visual técnico e mais no estudo do personagem principal. E é justamente essa visão humanizada de Oppenheimer que faz com que uma história aparentemente enfadonha e fria transborde em tela sentimentos conflitantes e genuínos que são belíssimos de testemunhar.

As bombas dilacerantes lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, que ceifaram mais de 210.000 vidas, ficam em segundo plano, mesmo sem perder nada de seu peso sufocante graças ao trabalho exímio e enervante da sonoplastia e ao exercício cirúrgico da antecipação da tragédia que só um diretor com domínio absoluto da linguagem cinematográfica como Nolan seria capaz de orquestrar.

Embora o filme não tenha nenhuma cena de ação, existe uma tensão constante e palpável no ar por conta do olhar perspicaz de Nolan ao focar sempre em momentos cruciais, como a tentativa do Oppenheimer de envenenar seu professor na década de 30, os testes imprevisíveis de detonação da bomba no meio do deserto na década de 40, sua relação conflituosa com mulheres fortes e instáveis emocionalmente, as acusações de que ele era do Partido Comunista, a existência de um espião participando do projeto, a suspeita de vazamento de informações sigilosas aos inimigos, além de todas as controvérsias políticas e morais enquanto o protagonista vai se descobrindo apenas como mais uma peça da engrenagem.

O filme é composto por todos estes recortes, não necessariamente em ordem cronológica, com destaque para três narrativas que se revezam e tematicamente se entrelaçam: o processo de construção da bomba (início dos anos 40), o “não” julgamento tendencioso pós bomba pela Comissão de Energia Atômica (final dos anos 40) e o depoimento do presidente desta mesma comissão, Lewis Strauss, no senado americano na década de 50.

Todo o arco envolvendo Strauss, vivido por Robert Downey Jr. em uma das melhores interpretações de sua carreira, recebe um tratamento estético diferenciado por Nolan. Sempre que ele aparece em cena, as imagens deixam de ser coloridas e o preto e branco utilizado acaba também refletindo a natureza real desse intrigante personagem e nos faz lembrar que nada é colocado em tela por acaso, seja a falta de cor, seja uma bandeira americana tremulando ao fundo durante uma comemoração repleta de culpa, ou até mesmo a falta de som no intervalo entre o brilho intenso da detonação e a força do impacto percebido segundos depois.

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Muitos temas controversos são apresentados e espertamente deixados no ar pelo diretor, que opta por uma abordagem mais filosófica/existencial do que crítica. Nolan entrega uma obra grandiosa e que não está interessada em apresentar um juízo de valor engessado sobre o personagem histórico que retrata, mas em colocar em tela elementos suficientes para que as plateias o façam. Afinal isso é a vida de alguém e somos experts em julgar os outros. Uma tarefa corriqueira e fácil, até Nolan provar que não.