Em FOREVERANDEVERNOMORE, o mago Brian Eno orquestra a trilha sonora do fim do mundo


Brian Eno, Foreverandevernomore
Foto | Cecilia Eno

Brian Eno é um artista singular. Em seus mais de 50 anos de carreira, o britânico arriscou como poucos. Pioneiro da tecnologia digital, soube explorar ao máximo as possibilidades do estúdio, bebeu de influências espalhadas pelo mundo para revolucionar a música ocidental e se consolidou como um guru da criatividade e da visão de futuro.

Entre as várias facetas artísticas de Eno no campo da música, duas delas sempre mereceram destaque. De um lado, o Eno que foi um dos criadores do Art Rock, tanto por meio de parcerias certeiras com Talking Heads e David Bowie, quanto por meio de seus discos solo da década de 1970, em que ele cantava e comandava um séquito de colaboradores do calibre de John Cale, Phil Manzanera, Robert Wyatt e Robert Fripp. Após quatro discos maravilhosos (o último dessa sequência, Before and After Science, de 1977, é uma das minhas seleções para levar para uma ilha deserta), Eno praticamente abandonou esse papel de cantor e compositor de canções de Art Pop, retomando-o ocasionalmente em 1990 (por meio de Wrong Way Up, parceria com John Cale) e em 2005, no disco solo Another Day on Earth.

Nesse ínterim, Eno construiu as bases da Ambient Music e se tornou conhecido como o pai desse gênero musical. Pois bem, eis que o novo disco de Eno, lançado semana passada, retoma o formato de canções com vocais, e, ainda por cima – e de forma inédita em sua carreira – constrói essas canções tendo como base principal as atmosferas de música ambiente que ele domina como poucos.

E não é só essa a inovação de FOREVERANDEVERNOMORE. Eno, que sempre fez músicas de forma cerebral e não emocional, afirmou em entrevista à revista Uncut que o novo disco é “uma exploração dos meus sentimentos”. E o motor desses sentimentos é a degradação ambiental do planeta, tema pelo qual o artista tem grande interesse desde meados de 1990 e que o transformou num ativista ambiental engajado.

De forma inédita, Eno traz as suas preocupações ambientais para o centro de sua criação artística no novo disco. A abordagem não é abstrata como de costume, mas simples e direta. E o resultado é belíssimo: um disco perturbador, que nos coloca como observadores de uma tragédia anunciada, ao mesmo tempo em que nos lembra das belezas naturais que estamos destruindo.

Eno não adota uma perspectiva acusatória, ele direciona seus esforços em colocar questões universais (“Quem somos nós?”) na segunda pessoa do plural. Estamos nessa juntos, somos todos responsáveis e/ou espectadores, e ele nos lembra disso ao longo do álbum. Não por acaso, e de forma simbólica, a primeira performance de uma canção do disco (“There Were Bells”) se deu em agosto de 2021 e o cenário foi um templo perto da Acrópole, na Grécia. Enquanto Eno cantava sobre o fim do mundo, o céu de Atenas brilhava intensamente como fruto de uma intensa queimada há alguns quilômetros de distância. O comentário de Eno na ocasião foi perspicaz como de costume: “Aqui estamos, no local onde nasceu a civilização, testemunhando o fim dela”.

Foreverandevernomore, de Brian Eno

Esse sentimento de desencanto e impotência é o traço mais marcante do disco, e a voz de Eno é um elemento vital para reforçar o drama. Apaixonado por cantar, mas constrangido com as limitações de sua voz, Eno acabou reforçando uma avaliação excessivamente negativa dos críticos com relação à ela. No entanto, o barítono caloroso e tocante dele (que sempre me agradou) envelheceu muito bem, ainda mais com o tom solene com o qual ele empunha sua voz diante de um cenário devastador. As melodias dos vocais são ponto de referência em quase todas as músicas, e o acompanhamento (sem elementos percussivos) é ofertado por craques como Jon Hopkins (teclado), Leo Abrahams (guitarras), Roger Eno (acordeão), e os vocais femininos de Darla e Cecily Eno (sobrinha e filha de Brian, respectivamente), Clodagh Simons e Kyoko Inatome. Além dos sintetizadores de Eno, é claro!

A coesão do disco é incrível, e entre os destaques está a faixa de abertura, “Who Gives a Thought”, que questiona a apatia da maioria e, num crescendo assustador, nos lembra que o tempo está acabando. Eno finaliza a canção cantarolando, como que ironizando o comportamento “despreocupado” de muitos diante do caos. Em “We Let It In”, Eno é acompanhado por um vocal feminino que insiste em repetir (“Sol, profundo, Sol, profundo”) de forma inquietante. “Garden of Stars”, por sua vez, é contundente e funesta: fogo, gás e poeira são o cenário para uma constatação definitiva: “Esses bilhões de anos vão terminar/ Eles terminam em mim”.  Ainda no lado A, a instrumental “Inclusion” flutua serenamente em torno dos violinos de Marina Moore.

O som de pássaros abre o lado B, e “There Were Bells” descreve as belezas naturais na primeira metade, enquanto na segunda parte as mudanças drásticas que estão ocorrendo são lembradas e o narrador já parece vislumbrar o fim. Aliás, um outro aspecto distintivo do disco é que ele se assemelha muito ao canto religioso medieval. Comentando a respeito, Eno, um ateu convicto, afirmou que nos últimos anos começou a reconhecer como a religião pode ter aspectos positivos ligados ao senso de pertencimento e companheirismo. Talvez isso tenha afetado a construção das canções de modo a parecerem hinos gospel, o que acentua o caráter dramático.

+++ Leia o Especial sobre Brian Eno
+++ Leia a crítica de ‘Before and After Science’, de Brian Eno

Como é bom testemunhar mais um capítulo da trajetória artística de um dos grandes gênios da música, que soube se manter relevante e atual mesmo com o passar do tempo. O Eno hedonista e inconsequente da primeira década amadureceu, e hoje o seu mantra de que a arte seria um refúgio para escaparmos da vida real sofreu algumas adaptações. A música de FOREVERANDEVERNOMORE pode ser gloriosamente escapista em vários momentos (especialmente na celestial faixa instrumental de encerramento, “Making Gardens Out Of Silence”), mas ela também consegue nos manter firmes e vigilantes com relação à vida real e seus percalços. Mais uma tacada de mestre de Brian Eno!

DESTAQUES: “Who Gives a Thought”, “Garden of Stars”, “Making Gardens Out Of Silence”


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