“Quando os discos do U2 e Lou Reed ajudaram a visualizar a intolerância”
Você me condenaria se dissesse que “troquei” o Mistrial de Lou Reed por esse álbum do U2 há cerca de 30 anos atrás?
Não foi exatamente uma troca.
Um amigo possuía o Unforgettable Fire e eu era interessado no disco. Ele disse que trocaria pelo Mistrial, que estava sendo vendido na loja Muzak.
Aceitei o negócio. Comprei o Lou Reed para efetuar a troca. Nem cheguei a escutar o álbum do ex-Velvet Underground, poderia, de repente, sentir uma ponta de arrependimento e desistir de fazer a troca. Além disso, estava lacrado.
Até aí tudo bem, recordo claramente disso tudo.
A troca foi feita na casa desse amigo (nosso então guitarrista), que era onde costumeiramente ensaiávamos todas as tardes de sábado (isso quando nosso baterista não trocava o ensaio pelo vôlei). Saindo de lá, passamos na casa de um outro amigo, que era nas redondezas. E foi justamente lá que sofri o que alguns chamariam de bullying hoje em dia.
Na escala de valores estabelecida por esse outro amigo, um disco de Lou Reed tinha mais valor que um disco do U2, e por isso eu havia sido enganado. Era um trouxa em trocar um Lou Reed por um U2. Entre sorrisos de gozação e palavras de desapontamento, o disco do U2 foi para a vitrola para provar o tamanho da minha “burrice” em fazer uma troca tão estúpida.
Na maior parte do tempo me mantive calado diante das gozações desse amigo, enquanto a decepção com a pessoa só crescia. Por dentro, dois pensamentos: 1º como pode ele avaliar a troca considerando sua “escala” de valores, ou seja, a sua “escala de valores” é que decide o que vale mais? 2º se na época nos sentíamos “marginalizados” por ouvir este tipo de música, por tentarmos nadar contra a corrente, por que então criar discriminações entre nós mesmos por causa de uma simples troca?
A partir daquele dia algumas coisas ficaram claras: esse “amigo gozador”, que muitos (até eu) tinham como uma pessoa sensata, quase um guru musical, se achava o dono da verdade. E a partir daí, comecei a manter certa distância.
Sempre desconfiei de pessoas que se acham donas da verdade.
Voltando ao U2, gostava e gosto do Unforgettable Fire porque marca claramente uma ruptura com o U2 de War e discos anteriores. Não que não goste da fase mais garagem da banda, pelo contrário. Mas Unforgettable Fire mostra(va) canções com estruturas diferentes das que estava acostumado e novas direções musicais para a banda, um passo em direção ao U2 messiânico, é verdade, mas um disco denso, menos garageiro, e com linhas de baixo profundas que me inspiravam. E tem a produção do genial Brian Eno.
De todas as canções do álbum, uma das que mais gostava era “Pride – In the Name of Love”, que com os anos se tornoua que acho mais chatinha, justamente por ter se tornado tão batida. É o álbum que abriu caminho para The Joshua Tree e o que me soa dos menos datados e mais audíveis. (DESDE A ÉPOCA QUE O TEXTO FOI ESCRITO, ISSO MUDOU UM POUCO
Nunca me arrependi da troca. Nunca desgostei do disco e também nunca ouvi o Mistrial até hoje, mas o episódio todo serviu como alerta.
Alerta sobre intolerância, sentimento de importância, gosto e, principalmente, decepção. O que viria a acontecer muitas outras vezes, com pessoas diferentes e situações diferentes. Mas com o tempo você vai aprendendo a se defender e quase se tornar imune. E não é a música que vai te livrar, mas a sabedoria, que vem com o tempo.
PS: ESSE TEXTO FOI PUBLICADO ORIGINALMENTE EM 2011. É UMA REPUBLICAÇÃO COM ALGUMAS MODIFICAÇÕES.
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