Estreia de Bruno Carboni, ‘O Acidente’ aborda polarização e aposta no desconforto


Carol Martins em 'O Acidente' (2022)
Crédito: Glauco Firpo

É interessante como O Acidente parte de um assunto que, no Brasil atual, não pode vir à tona em qualquer lugar ou com qualquer pessoa para falar justamente sobre como as relações, a humanidade e o afeto também se polarizam. Para isso, Bruno Carboni, em seu filme de estreia, renega o acidente como grande impulsionador da obra. Por mais que ele seja o que vai ligar todos os personagens, acaba utilizando da perspectiva negativa que uma formação educacional em um colégio militar pode causar a um garoto tímido, retraído ou obrigado a se isolar em seu próprio mundo. Para isso, ele, propositalmente, direciona o falso poder de decisão para uma protagonista que está do outro lado dessa ‘‘guerra cultural’’, tornando-a juíza do futuro de um garoto que, através de gestos e interesses colocados em cena, aparenta ser mais pertencente ao mundo dela, não ao de seus pais.

As similaridades, mas principalmente o perigo iminente que uma alma jovem e sensível pode sofrer a qualquer momento expande o drama vivido por Joana, interpretada majestosamente por Carol Martins. Nesse sentido, é como se a personagem se sentisse na obrigação de fazer algo por Maicon, não apenas pensando no garoto, mas refletindo a partir dele sua própria identidade. Esse ponto é sustentado pela maneira no qual Carboni filma ambos, seja sozinhos ou compartilhando planos. Quando solitários, Joana e Maicon parecem ter a mesma natureza, possuem a quietude, a curiosidade, entretanto, quando juntos, Maicon se revela como falador, brincalhão e parece não possuir vergonha ou empecilhos para falar sobre seus sentimentos, algo que Joana não é capaz, nem nos momentos finais do filme. Por esse ângulo, portanto, é como se Joana inconscientemente buscasse corrigir uma falha em sua criação, um evento traumático ou algo relacionado a sua existência enquanto mulher e sáfica, através do garoto.

O-Acidente-Cena-03-credito-Tuane-Eggers
Carina Sehn e Carol Martins em ‘O Acidente’ | Crédito: Tuane Eggers

Isso se torna mais nítido pela maneira que Carboni conduz o cotidiano de Joana, nos entregando, aos poucos, a psique de uma mulher que parece estar quebrada há muito tempo e, até então, sem forças para remendar-se. Para tal representação, ele não usa o falado, não cria diálogos onde existe uma linha de fala esclarecedora, ele nos mostra. Devido a tal escolha, acabamos por acompanhar uma mulher que prefere perder o emprego ao falar para sua chefe que foi atropelada, que omite tudo que seja possível de sua esposa, e que continua a fingir estar grávida, mesmo quando o aborto espontâneo já lhe ocorreu. Há, dessa maneira, uma internalização de dores que se disfarça de indiferença, algo que parece ser como uma barreira protetora que mais lhe prejudica que lhe beneficia no final das contas.

Para chegar a essa interpretação, basta observar como o diretor trabalha com a câmera e com a extração do silêncio. A câmera raramente captura momentos onde Joana, com terceiros, possui cenas minimamente confortáveis, que estimulam um sentimento acolhedor por parte do público e a ausência de qualquer som não diegético ampliam esse desconforto, criando algo extremamente cru, que parece bem próximo de um realismo. Essas cenas ocorrem de maneira generalizada, do rosto do pai militar que é escondido com frequência a constantes figuras de costas, posicionadas de maneira nada simétrica para a câmera, como se estivessem atrapalhando o foco central. Tal desconforto, inclusive, é ressaltado em cenas que deveriam ser improváveis, como a de amor de Joana com a sua esposa, onde o afeto aparenta ser mais reservado para o feto que propriamente para ambas.

+++ Leia a crítica de ‘Mato Seco em Chamas’, de Joana Pimenta e Adirley Queirós 

Há, portanto, uma constante sensação de que alguma coisa está errada, como os ladrilhos da parede da casa que se despedaçaram quando foram ao chão. É possível dizer que ocorreu uma infiltração ou eles foram colocados, desde o início, de maneira errada? Bom, fica muito perceptível que a disparidade entre uma família conservadora e uma família liberal foi o fator decisivo, foi a última infiltração para o desenvolver da externalização da crise de Joana, mas o filme não nos permite ter uma resposta completa quando a vislumbramos finalmente expressar sua angústia, por para fora sua dor. Seria o encerramento de seu vínculo com Maicon? Seria a perda do menino para os ‘‘inimigos’’ do progresso? Ou seria a perca do seu próprio menino? Não sabemos, a única coisa que realmente sabemos é que, como os ladrilhos, ela se permitiu cair.

CLIQUE PARA ASSISTIR AO TRAILER

O-Acidente-Cartaz

FICHA TÉCNICA E MAIS INFORMAÇÕES:

TÍTULO ORIGINAL: O Acidente
ANO: 2022
GÊNERO: Drama
PAÍS: Brasil
IDIOMA: Português
DURAÇÃO: 1:35 h
CLASSIFICAÇÃO: —
DIREÇÃO: Bruno Carboni
ROTEIRO: Marcela Bordin, Bruno Carboni
ELENCO: Carol Martins (Joana), Gabriela Greco (Elaine), Luis Felipe Xavier (Maicon), Marcello Crawshaw (Cléber) e outros
AVALIAÇÕES: IMDB

Previous Jeff Tweedy: Um Gênio em 50 Canções
Next Editors supera estreia com 'An End Has a Start', seu melhor álbum

1 Comment

  1. Júlio
    29/08/2023

    STHEFANY, VOCÊ É A MAIOR CRÍTICA DO UNIVERSO

Leave a reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *