Preocupado com o discurso, ‘Raquel 1:1’ tem reflexões mastigadas sobre a misoginia na religião



O cinema não consegue se desvincular da vida real e até seus filmes mais escapistas dizem respeito a algo, relaciona-se a fuga/negação de alguma coisa presente em nossa sociedade. O cinema brasileiro, entretanto, tem nos seus filmes mais populares dos últimos anos, o enfrentamento, uma herança clara deixada pelo nosso Cinema Novo.

Ultrapassado os momentos de maiores tensões em nosso país, nossos filmes mais célebres (reconhecidos nacional e internacionalmente), desenvolvidos neste período de ascensão de guerras culturais, chegam apresentando uma marca desse mesmo tempo: a nitidez em seu discurso quanto aos problemas que nos eram circundantes e que prosseguem ao nosso redor.

Raquel 1:1, dessa forma, apresenta discurso muito explícito quanto à crítica que está tecendo, assim como fizeram Marighella (2019), Medida Provisória (2020), Carvão (2022), Marte Um (2022) e também Medusa (2021), essa última produção que, inclusive, tem muito em comum com nosso filme em questão. O longa é uma obra voltada a despertar uma observação crítica acerca de um possível problema na nossa sociedade que é a aceitação da opressão à mulher no evangelicalismo, principalmente no núcleo das denominações pentecostais. E para encararmos esse problema, a história nos apresenta uma solução direta desde seus primeiros minutos: é preciso reescrever a Bíblia.

O filme de Mariana Bastos parte dessa questão para nos situar em um Terror Psicológico que, diferente de Medusa, não consegue superar a escala dos discursos. E aqui eu retorno a citar o filme de Anita Rocha da Silveira, porque há esse encontro em usar um tom sobrenatural a partir da metamorfose de uma alma cristã quando se aproxima da verdade/libertação. Raquel 1:1, nesse sentido, vai usar o corpo de sua protagonista, a Raquel (Valentina Herszage), para guinar sua atmosfera, seja através da maquiagem para refletir alegorias bíblicas, ou na exploração psicológica, essa que eu devo creditar que é muito bem explorada. Mas, como já mencionado, faltou a habilidade de sair dessa caixinha onde o discurso é mais importante que a forma como ele é feito.

Still do filme Raquel 1:1
Valentina Herszage em still do filme ‘Raquel 1:1’

Enquanto Medusa sabe aproveitar o mistério e compor uma mise-en-scene que abriga as suas alegorias, Raquel 1:1 falha nessa questão por ser excessivamente pedante. Todos os atos e ações da comunidade religiosa contra a Raquel ou da própria Raquel, são, de algum jeito, explicadas verbalmente, o que se torna mais desagradável quando se percebe que o filme não adota elementos satíricos e parece realmente demonstrar um nível de preocupação em nos situar sobre cada acontecimento que será colocado em tela.

Por mais que o filme apresente esse grave problema, é de se destacar o trabalho de fotografia de Fernanda Tanaka e a atuação de Valentina Herszage, em mais uma grande atuação em um filme de Horror, ela que desempenhou um papel sensacional em Mate-Me, Por Favor (2015), da diretora de Medusa. Como Raquel 1:1 é um filme que, em parte, depende da atuação de Herszage para funcionar, a atriz corresponde muito bem. Existe algo que fixa nossa atenção em seus olhares vazios e em momentos onde ela precisa ser uma “Carrie moderna”, precisa passar para nós um processo, um comportamento onde cada passo a leva para mais próximo de uma explosão.

+++ Leia a crítica do suspense/terror ‘ Corra, Querida, Corra’, de Shana Feste

Raquel 1:1, em linhas gerais, é um filme que não confia em nós e na nossa capacidade de compreensão sobre o que será abordado acerca das Escrituras e o ato de desconfiança inibiu que o projeto fosse muito maior.


Poster do filme Raquel 1:1

 

Título Original | Ano: Raquel 1:1 | 2022
Gênero: Suspense, Terror Psicológico, Mistério
País | Idioma: Brasil | Português
Duração: 1:30 h
Classificação: 16 anos
Direção: Mariana Bastos
Roteiro: Mariana Bastos
Elenco: Valentina Herszage, Priscila Bittencourt, Emílio de Mello, Eduarda Samara e outros
Avaliações: IMDB | Rotten Tomatoes

 

 


 

Previous 'Crank' é o Hoodoo Gurus cru e pesado, impecável na simplicidade
Next 'Terror Twilight' soa anti-Pavement, e nada poderia ser mais Pavement

No Comment

Leave a reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *