Em ‘Uma Família Feliz’, a artificialidade interfere na qualidade dramática

Thriller do diretor José Eduardo Belmonte, ‘Uma Família Feliz’ é inspirado no livro homônimo de Raphael Montes e tem Grazi Massafera e Reynaldo Gianecchini no elenco

As histórias de Raphael Montes conquistaram o coração dos leitores de terror e suspense no Brasil. Eu mesma fiquei chocada com a resolução do mistério em Uma Mulher no Escuro, assim como também fiquei horrorizada ao ponto de sentir um leve temor na hora de dormir devido a O Vilarejo. Devido ao sucesso, o mundo literário ficou pequeno para Montes, suas histórias chegaram ao audiovisual, assim como ele mesmo. O seriado Bom Dia, Verônica é uma adaptação de uma obra de sua autoria, Montes também é o roteirista de A Menina Que Matou os Pais e O Menino Que Matou Meus Pais. E em Uma Família Feliz, além de seu livro servir como inspiração para a produção, ele também o roteiriza.

Estrelado por Grazi Massafera e Reynaldo Gianecchini, o começo do filme começa com o final, um artifício tradicional de todo bom e pretensioso thriller. Dessa forma, cabe a nós espectadores irmos montando o quebra-cabeças, criando teorias, enquanto acompanhamos as situações que nos levarão àquele final marcado pela brutalidade.

Apesar do começo impactante, o diretor, José Eduardo Belmonte, não consegue manter o interesse pelo desencadeamento do mistério sobre a tragédia que está prestes a ocorrer. E o fator para que o filme se torne um thriller morno, que nunca engata para chegar no ponto alto que assistimos nos primeiros minutos, vem de uma desnecessária necessidade de usar estímulos sonoros, que acabam tornando artificiais as ‘‘viradas’’ do filme.

Écerto dizer que o drama brinca com a artificialidade, pois invade a vida de uma família rica que vive uma vida de aparências. No entanto, a mesma artificialidade que vai sendo desconstruída ao sabermos informações reais da família, como o câncer de uma das filhas e as dificuldades da maternidade para Eva (Massafera), são interrompidas pela construção artificial. De maneira mais objetiva, quero dizer que existe uma incompatibilidade irritante e constante. Ao mesmo tempo que o filme claramente adota um tom mais dramático e vai se construindo através de um drama de uma mãe que apresenta sinais de depressão pós-parto, ele demonstra que não confia no que está fazendo, utilizando, assim, a artificialidade.

Como em um filme original Netflix, o som não-diegético entra em cena em momentos no qual a imagem não sugere nada chocante, revelador ou importante. O som apenas está ali para atrair novamente a atenção para o filme, para o drama em tela. E, em minha opinião, isso não pode ser ignorado, afinal, não é apenas fingir ou relevar a questão sonora, mas reconhecer que ela também impacta no que estamos assistindo, assim, independente do quão bem é construída a trama, o som vai interferir. Como podemos nos sentir quando estamos assistindo atentamente um drama familiar e, de repente, o som evidencia algo que estamos longe de ver? Eu não consigo relevar isso, afinal, o som, o que estamos ouvindo também faz parte de um filme.

+++ Leia a crítica de ‘Como Nossos Pais’, de Laís Bodanzky  

Dito isso, é um tanto decepcionante ver como Uma Família Feliz inibe seu próprio potencial pela adoção da artificialidade. O longa, assim como tudo escrito por Raphael Montes, deveria ter a coragem do mesmo. E, nesse caso, deveria ter a coragem de ser simples, de ser um drama e se vender como tal.