Distopia do presente, ‘Mato Seco em Chamas’ mostra a complexidade do Brasil atual


Mato Seco em Chamas, Destaque

Filiado ao chamado Novíssimo Cinema Brasileiro – fica a recomendação de leitura do artigo O “Novíssimo Cinema Brasileiro”: sinais de uma renovação, do crítico de cinema e professor Marcelo Ikeda -, Mato Seco em Chamas facilmente pode ser considerado como um dos melhores e mais consistentes representantes da atual configuração do Cinema Nacional, de contornos não tão precisos, mas certamente perceptível a partir de seu espraiado e plural horizonte temático, estético e geográfico.

Dirigido pelo brasiliense Adirley Queirós e pela portuguesa Joana Pimenta, o filme, recém-chegado nos cinemas do país, é um exercício vigoroso de criatividade, não apenas pela natureza osmótica de sua mise-en-scène, hibridamente estruturada na fronteira entre o documental e o ficcional, mas, também, pela maneira como se apropria de elementos próprios à sintaxe cinematográfica do Western e da Sci-Fi distópica com vista a ressignificá-los à luz de uma realidade tão particularmente brasileira.

Como cineasta, Adirley sempre demonstrou seu encantamento crítico por Ceilândia, cidade-satélite do Distrito Federal que moldou sua história de vida desde criança. Em Mato Seco em Chamas, o palco da narrativa é a localidade de Sol Nascente, o segundo maior aglomerado populacional periférico do Brasil. Esse contexto não poderia ser mais perfeito aos propósitos do longa, uma vez que a comunidade possui características que denotam, com expressividade, o déficit de presença do Estado e, ao mesmo tempo, a capacidade de os indivíduos se organizarem de modo a resistir e existir fazendo valer regras e padrões de convivência bastante complexos e peculiares, não raro paradoxais.

Nesse microverso fílmico de Sol Nascente, em que a lei vigente é difusa, mas não menos sentida, observa-se justamente uma representação simbólica do Brasil contemporâneo em toda sua singularidade social de ambiguidades e contradições, na qual violência, fé, esperança, jeitinho, lazer e frustração são vértices de uma mesma realidade. Muito da força do longa se deve à perspicácia do roteiro em apontar tais aspectos rejeitando uma abordagem meramente ilustrativa ou, o que seria pior, panfletária, ainda que a política seja uma dimensão constante de modo integral – diria que apenas duas cenas causam incômodo quanto à sua presença, pois extrapolam desnecessariamente para uma escala nacional a discussão até então em curso, o que enfraquece um pouco a experiência de Mato Seco em Chamas enquanto distopia do tempo presente.

Absurdamente sensível e genial a decisão feita pela direção quanto a recorrer a atores não profissionais para compor o elenco, tendo destaque, em especial, o núcleo de mulheres – Joana Darc Furtado, Andreia Vieira e Léa Alves, todas ex-detentas da Colmeia, prisão feminina de Brasília – que lideram a gangue responsável por explorar clandestinamente o oleoduto existente no subsolo e refinar o petróleo retirado com o intuito de usá-lo como base de sustentação do poder paralelo em Sol Nascente.

Por meio dos relatos dessas mulheres evocando suas vivências dentro e fora da prisão, filmados em sua maioria a partir de planos longos e espontâneos, Adirley e Joana transformam a memória não somente em mecanismo de resiliência individual e coletiva, mas, igualmente, em instância que permite ao espectador se conectar com elas e permitir-se operar a desconstrução de certos estereótipos e percepções acerca de quem cometeu alguma prática dita criminosa e teve cerceada sua liberdade.

+++ Leia a crítica de ‘Racionais, das Ruas de São Paulo pro Mundo’

Não é exagero afirmar que Mato Seco em Chamas se constitui como uma das mais impactantes e gratificantes obras do cinema brasileiro nos últimos dez anos. A força de seus diálogos e imagens, bem como a maneira como isso é articulado do ponto de vista da linguagem cinematográfica, acabam sendo fundamentais para fazer dessa ficção de alma documental uma releitura inventiva acerca do nosso país nos dias atuais. Mais que inspiração para o filme, Mad Max talvez nos lembre de que o Brasil, hoje, em alguma medida, já seja distópico – na verdade, uma distopia que, de tão insana em sua realidade, nunca antes fora imaginada por alguém.


Poster do filme 'Mato Seco em Chamas'

 

Título Original | Ano: Mato Seco em Chamas | 2022
Gênero: Drama, Policial, Documentário
País | Idioma: Brasil | Português
Duração: 2:33 h
Classificação: 14 anos
Direção: Joana Pimenta e Adirley Queirós
Roteiro: Joana Pimenta e Adirley Queirós
Elenco: Débora Alencar, Léa Alves da Silva, Gleide Firmino, Joana Darc Furtado e outros
Avaliações: IMDB

 

 


Previous 'Andança' promove justa homenagem a Beth Carvalho e ao Samba
Next ‘Sharper’ é a perfeita prova de que tudo em excesso faz mal

No Comment

Leave a reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *