O samba, desde a sua gênese, é um dos melhores instrumentos / vertentes culturais para entender as agruras e delicias de ser brasileiro. E, sem sombra de dúvida, pensar na longa trajetória do gênero, que está totalmente arraigado a nossa identidade, é pensar em Beth Carvalho. Antes marginalizado, o gênero foi crescendo em popularidade no século passado e se tornou um dos maiores expoentes de nossa cultura. Diversas são as figuras que ajudaram na construção desse cenário, mas talvez um dos exemplares mais importantes do alcance desse status de grandeza é a finada Beth Carvalho.
Tida como a “madrinha do samba”, Beth Carvalho soube, como poucas da sua época, conciliar tradição e modernidade, ao se aproximar tanto da velha guarda (Cartola, Clara Nunes, Nelson Cavaquinho, Elizeth Cardoso…) quanto da sua própria geração (Almir Guineto, Zeca Pagodinho, Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Fundo de Quintal…). Sua longeva carreira (com mais de 30 trabalhos de estúdio e registros ao vivo) é marcada por discos icônicos como “De Pé no Chão”, “No Pagode”, “Na Fonte”, “Nos Botequins da Vida”, “Sentimento Brasileiro” e “Suor no Rosto”, trabalhos estes que gerariam inúmeros hits do cancioneiro popular brasileiro como “Vou Festejar”, “Coisinha do Pai”, “Andança”, “A Chuva Cai”, “Caciqueando”, “Camarão que Dorme a Onda Leva”, entre tantos outros.
Sem temer represálias, a cantora soube fazer de sua arte um instrumento de mobilização. Canções como “Saco de Feijão”, “Virada” e “Chorando pela Natureza” servem de amostra de sua afiada verve política orientada à esquerda. Seu posicionamento, inclusive, transcendeu o universo da música e ganhou as ruas, pois Carvalho se fez presente em diversos momentos de nossa história como a Diretas Já, a derrocada da ditadura e o impeachmet de Dilma Roussef. Sua falas pontuais promoveram também um discurso afrontoso ao racismo que, infelizmente, segue presente em nosso quotidiano.
E para prestar justa homenagem a umas das maiores cantoras do país foi lançado o documentário Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho (2022). Dirigido e montado por Pedro Bronz, o filme é um convite à imersão na alma da cantora que soube, a sua maneira, redefinir um gênero musical ao qual dedicou sua vida.
Fugindo do formato cronológico e tradicional, o longa é um registro ousado que consegue mostrar as diversas articulações que Beth Carvalho teceu em vida. E para construção desse ruptura, Pedro teve acesso a registros inéditos de imagens de arquivo feitas pela própria Beth Carvalho, que, tal como uma pesquisadora (como gostava de se autointitular), procurou registrar em vídeo diversos acontecimentos de sua carreira. O ineditismo das cenas consegue fazer com que a obra ganhe ares ainda mais intimistas e emocionantes.
Seja em defesa de sua autenticidade artística, sejam em prol da valorização dos compositores, a produção consegue captar como a artista conseguiu remodelar o mercado, abrindo espaço para que mais mulheres pudessem conquistar o seu espaço ante ao mundo masculinizado do Samba.
Outro golaço do filme é que o mesmo promove justa homenagens a diversos músicos (como o violonista Dino 7 Cordas) que contribuíram para que Beth formatasse sua sonoridade ímpar que ajudou a definir sua geração. Arlindo Cruz, afastado da música desde 2017 em decorrência de um AVC, é outro que ganhas as telas em vários momentos que mostram os bastidores de várias parcerias bem sucedidas.
Se hoje é possível pensar que Samba, Democracia e Sociedade é uma articulação possível, isso em muito se deve ao trabalho feito por Beth Carvalho. Essa articulação, inclusive, é a força motriz do recém laçado livro Samba, Democracia e Sociedade. Organizado por Luiz Ricardo Leitao e Marcelo Braz, a obra tem como foco analisar historicamente como o Samba se tornou uma forma de resistência artístico/cultural.
+++ Leia a crítica do documentário ‘Em Casa com os Gil’
Não à toa o livro é dedicado a ela, que faleceu 2019. Isso é uma clara amostra que o legado que Beth construiu segue mais vivo do que nunca, transcendendo o tempo e espaço.
Título Original | Ano: Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho | 2022
Gênero: Documentário, Biografia
País | Idioma: Brasil | Português
Duração: 1:55 h
Classificação: Livre
Direção: Pedro Bronz
Roteiro: Pedro Bronz e Leonardo Bruno
Elenco: Beth Carvalho, Zeca Pagodinho, Cartola, Arlindo Cruz, Dino 7 Cordas e outros
Avaliações: IMDB
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