Indicado ao Oscar 2024, o documentário do diretor Mstyslav Chernov, ’20 Dias em Mariupol’, é pobre quanto a linguagem
Bill Nichols, no crucial livro Introdução ao Documentário, lista os tipos de abordagens possíveis nesse gênero, portanto, lista uma série de subgêneros e dentre eles está o documentário expositivo. Em resumo, o documentário expositivo é aquele que apresenta um orador (voz-off) e, geralmente, a imagem desempenha um papel secundário, servindo para uma lógica informativa que vai ser transmitida verbalmente. A montagem, nesse sentido, colabora para estabelecer a continuidade de um argumento que sempre apresenta uma função, seja moral ou social.
Nichols também vai apresentar outra maneira de se fazer um documentário, que é através do modo observativo. Nele, o diretor apenas registra, não intervém nos acontecimentos que estão bem a sua frente. Assim, as imagens vão falar por si e cabe à montagem organizar bem esses registros ao ponto que eles façam sentido para quem assiste.
Faço essa introdução apresentando dois desses subgêneros porque acredito que 20 Dias em Mariupol encontra-se no meio de ambos. Ele é expositivo, pois vemos a forte narração, as imagens se tornando secundárias (principalmente as compilações de canais de TV, prints de internet). E, ao mesmo tempo, ele é observativo, pois o diretor/jornalista Mstyslav Chernov, na maioria predominante do tempo não se intromete nos acontecimentos, captura-os como um retrato da realidade. No entanto, mesmo “distante”, sem se “intrometer”’ no que filma, é perceptível uma condução falada para apresentar seu lado ideológico, a sua moral.
Dito isso, o fato de 20 Dias em Mariupol estar sendo influenciado por dois tipos de documentários mais atrapalham do que contribuem. Chernov até acha um ponto de encontro, mas a proximidade entre os dois empobrece um trabalho que visivelmente envolveu o risco de perder sua dignidade física e psicológica. Veja, isso é algo que, inclusive, Chernov deveria saber: se existem divisões nas formas documentais, é porque algumas vão simplesmente ser como água e óleo e, portanto, não vão se misturar, não vão se fundir e resolver em um novo elemento.
Ignorando as divisões, Chernov monta seu filme de uma maneira observativa, utilizando data, localizações e informações pontuais que são faladas por pessoas observadas. Tudo que o público precisa saber já está nas imagens, porém, ele quer tornar ainda mais explícito o que já está explícito. Nesse sentido, ele se utiliza da voz-off e descreve acontecimentos que já estamos assistindo.
Devo incluir que essa narração é feita em inglês e o sotaque bem acentuado escancara que Mstyslav Chernov não é estadunidense ou britânico. E qual é a relevância dessa informação? O que há de importante em um ucraniando estar descrevendo imagens em inglês? Bom, essa é a menor das provas de que 20 Dias em Mariupol tem mais interesse em ser uma arma ideológica pró-Ucrânia, pró-Estados Unidos e Pró-Ocidente do que um bom documentário.
Está tudo bem em ter uma posição ideológica, toda produção fílmica possui. Em 1936, o ensaísta e documentarista Paul Rotha escreveu que filmes propagandísticos, de divulgação de ideias, eram uma arma poderosa de persuasão e deveriam ser utilizados para mobilização. É claro que Rotha se referia a usar filmes com uma visão pré-determinada para mobilizar a classe trabalhadora em prol de interesses da própria classe trabalhadora. Porém, ele deixa claro que para funcionar é necessário ter inteligência, imaginação e ser realizado por pessoas experientes. Esse argumento do seu ensaio precisa ser citado aqui, pois 20 Dias em Mariupol até possui a sagacidade de usar imagens e narração para evocar o medo, a revolta, mas ainda é um documentário que só vai se comunicar com quem é pró-Ucrânia, pró-Estados Unidos e Pró-Ocidente, afinal, a sua linguagem continua pobre, não há uma criatividade e nem um visível esforço (ou experiência) para esconder suas tortuosas ambições.
Por fim, cabe ressaltar que para vender essa ideia de uma Rússia monstruosa, Chernov investe em imagens verdadeiramente cruéis que serão reforçadas por sua voz. Assim, o documentário busca por cadáveres (de animais, bebês, idosos e mulheres), por sangue e desespero. Chernov aposta na dor, mas apenas na dor, pois, diante de um cenário tão grave, não se comover pode ser considerado um ato desumano.
+++ Leia a crítica de ‘Marinheiro das Montanhas’, de Karim Aïnouz
Em uma sociedade que ama o cancelamento, eu acredito que pessoas não querem ser taxadas como insensíveis, por qualquer razão que seja. Logo, a qualidade do filme não vai ser questionada, afinal, questionar é defender as atrocidades da Rússia, estar ao lado de um ditador genocida. Eu me comovo, porém, a minha comoção não me impede de reconhecer que 20 Dias em Mariupol é pobre quanto a linguagem, se apropria muito mal da forma documental e, diante de tudo isso, escancara que é apenas um filme político, para estadunidense ver, se emocionar e premiar.
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FICHA TÉCNICA E MAIS INFORMAÇÕES:
TÍTULO ORIGINAL: 20 Days in Mariupol
ANO: 2023
GÊNERO: Documentário
PAÍS: Ucrânia, Estados Unidos
IDIOMA: Russo, Ucraniano e Inglês
DURAÇÃO: 1:35 h
CLASSIFICAÇÃO: 14 anos
DIREÇÃO: Mstyslav Chernov
ROTEIRO: Mstyslav Chernov
ELENCO: Mstyslav Chernov, Evgeniy Maloletka e Liudmyla Amelkina
AVALIAÇÕES: IMDB
Análise perfeita. Parabén.s