Em ‘Amanhã’, experimento apresenta a desigualdade entre os dois “Brasis”


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Amanhã / Descoloniza Filmes - Divulgacao

Produzido num intervalo de tempo de 20 anos, ‘Amanhã’, de Marcos Pimentel, é um retrato da desigualdade no país

Um dos melhores documentários de toda a história do Cinema é Cabra Marcado para Morrer (1984), do cineasta brasileiro Eduardo Coutinho. Aos que desconhecem a história da produção, vou contar brevemente para fins de iniciar esse texto.

Em 1962, o líder camponês João Pedro Teixeira foi assassinado em Sapé (PB) a mando de latifundiários da região. Seu assassinato gerou uma comoção popular, principalmente entre os camponeses, que em milhares (aproximadamente cinco mil) tomaram as ruas da cidade em protesto.

Marcos Pimentel encontra na incerteza causada pelo tempo a oportunidade para realizar um ótimo documentário

Esse acontecimento atraiu a atenção de Eduardo Coutinho que, ao conhecer a esposa de João e a história do mesmo, decidiu fazer um filme sobre o sujeito. As gravações iniciaram em Galiléia (PE), Elizabeth Teixeira, viúva de João, é a protagonista. Tudo estava indo bem até o Golpe Militar acontecer e a gravação do filme ser denunciada. A produção para, os materiais são apreendidos. Quase duas décadas depois, Coutinho volta à Galiléia, mas com outra ideia: reencontrar os camponeses que participaram do filme, mas, principalmente, Elizabeth Teixeira.

Cabra Marcado para Morrer é uma preciosidade e eu particularmente acredito que o que permite as novas abordagens jornalísticas adotadas por Coutinho e a união dessa objetividade formal ao subjetivo, ao humano, vem justamente da relação com o tempo e a incerteza do que encontrar. Mas vocês devem estar se perguntando: O que isso tem haver com Amanhã?

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Assim como Coutinho, Marcos Pimentel encontra na incerteza causada pelo tempo a oportunidade para realizar um ótimo documentário, Amanhã.

Em Belo Horizonte (MG), no ano de 2002, Pimentel encontrou em frente à janela de seu apartamento uma visão clássica de algo que está presente em todo livro de Geografia: O bairro nobre ao lado da periferia. A linha invisível que separa o bairro e a favela é a Barragem Santa Lúcia, lugar descrito por Marcos, na época, como um local onde todos sabiam seu lugar e, por isso, não interagiam. Decidido a romper com essa separação, Pimentel junta três crianças: Zé Thomas, do lado rico da barragem, e Júlia e Cristian, irmãos do lado pobre da Barragem. Juntos, eles brincam na laje, jogam futebol no campo de terra, conversam nas vielas. Os três têm um dia feliz.

Em 2022, o cineasta decide reencontrar as três crianças. A linha invisível continua, mas, diferente da primeira vez, Pimentel não consegue romper com a divisão entre os dois Brasis. Zé Thomas, o menino do lado rico que agora é um homem crescido, nega o encontro, justificando que o Brasil está muito dividido. No filme, demoramos um tempo para sabermos desse paradeiro de Zé Thomas, mas deixo neste texto sua escolha logo de início, pois é na ausência do garoto que Pimental constrói um longa muito objetivo nos seus interesses, mas também muito humano, muito coração.

Se em Cabra Marcado para Morrer, Elizabeth Teixeira completa o quebra-cabeça sobre o impacto da ditadura militar no filme, em sua vida e na vida de seus filho, em Amanhã é a ausência física de Zé Thomas que constrói o que sempre esteve bem à frente do nosso nariz: o Brasil não se tornou dividido com a eleição presidencial de 2018, Brasil é e sempre foi dividido. Assim, a ausência de Zé Thomas, um cara rico com acesso a praticamente tudo que desejar, também significa a ausência de tantas coisas (efetivas políticas públicas, respeito, dignidade, maiores oportunidades) que nunca chegaram na periferia.

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Sem Zé, seguimos os dois irmãos, Júlia e Cristian que, apesar de possuírem o mesmo sangue, tomaram rumos completamente diferentes. Quando Pimental encontra Júlia, ela é mãe de duas crianças, passou por um recente divórcio e possui dificuldades financeiras. Por ela, ele descobre que Cristian, seu irmão, está preso novamente, mas que deixará a prisão mais cedo. Júlia tem uma inclinação à meritocracia, é antipetista; já Cristian demonstra uma maior consciência sobre a contribuição do governo do PT, do Lula, e critica arduamente as decisões de Bolsonaro em relação à pandemia.

Nessa discordância quanto à própria percepção da realidade de suas vidas (que repito são distintas), os irmãos apresentam a mesma fraternidade, o cuidado e incentivo quanto aos projetos que desejam realizar. Me parece que a ausência de Zé Thomas também acaba contribuindo para uma maior construção na relação dos irmãos, afinal, uma vez que suas histórias tomam a tela é difícil não sentir empatia, não torcer para eles. Não torcer principalmente quando compreendemos que são eles por eles, que não há políticas públicas ou figuras poderosas com o poder de transformação de suas realidades.

+++ Leia a crítica de ‘Mato Seco em Chamas’, de Joana Pimenta e Adirley Queirós

Nesse sentido, com dois protagonistas sem muita perspectiva de futuro, mas com uma coragem e enorme força para continuarem vivendo, encontramos em Amanhã um retrato poderoso da desigualdade, do abismo entre os dois Brasis.

CLIQUE PARA ASSISTIR AO TRAILER

Amanha-Poster-Filme

FICHA TÉCNICA E MAIS INFORMAÇÕES:

TÍTULO ORIGINAL: Amanhã
ANO: 2023
GÊNERO: Documentário
PAÍS: Brasil
IDIOMA: Português
DURAÇÃO: 1:46 h
CLASSIFICAÇÃO: 14 anos
DIREÇÃO: Marcos Pimentel
ROTEIRO:Marcos Pimentel
ELENCO:
AVALIAÇÕES:

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