Filme de estreia de Anna Muylaert, ‘Durval Discos’ merece ser revisitado


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Foto: Divulgação

Vencedor do Festival de Gramado de 2002, ‘Durval Discos’ está de volta aos cinemas em versão remasterizada

Há alguns meses, escrevi um texto sobre M3GAN no qual usava exemplos de discos de vinil para falar sobre a boneca. Mais especificamente, usava os lados do disco, Lado A e Lado B. Digo isso, pois, mesmo não imaginando que um dia iria assistir a Durval Discos, me arrependi de ‘‘gastar’’ essa comparação, afinal, o título do filme de Anna Muylaert já indica que discos são importantes para o filme e o Lado A e Lado B são quase como a verdadeira essência de Durval Discos.

Para os que não são íntimos, os vinis são diferentes de CD’s. Para ouvir, às vezes, é necessário virá-los de um lado para o outro. Assim, em um lado, temos a parte A, a parte “oficial” do disco, comercial. Em contraponto, a parte oposta, na maioria das vezes, é reservada a músicas experimentais, autênticas, não comerciais. Cito isso evidenciando que nem todos os discos funcionam dessa maneira, mas essa tornou-se uma espécie de tradição, tanto é que em 2001, Durval Discos também a seguiu.

Assim, no lado A do filme nos é oferecida uma história com cara de um episódio filler de A Grande Família ou de um seriado criado por Miguel Falabella. No bairro de Pinheiros, São Paulo, Durval é dono de uma loja de discos anexada à casa da sua mãe, lugar onde também mora. Ele está passando por uma crise nos negócios, devido a ascensão da comercialização dos CD’s, mas nega abraçar a modernidade. Enfrentando problemas que não são maiores que uma crise financeira, mas também considera incomodante. Exemplo disso é que Durval pensa em contratar uma empregada por cem reais quando sua mãe esquece de fazer o feijão.

Nesse lado A, é interessante como Anna Muylaert constrói uma comédia com a cara do humor brasileiro. Criando situações que hoje vemos facilmente em filmes como Minha Mãe é uma Peça, mas também em diversas outras comédias que extraem humor da dura realidade brasileira. Assim, é possível rir da exploração do pobre sobre o miserável. Afinal, Célia (Letícia Sabatella) aceita trabalhar por cem reais e gera situações cômicas na narrativa. Mas também rir da figura do próprio Durval (Ary França), um hippie que nunca cresceu, tanto que ainda mora com a mãe, depende dela para se alimentar. Nesse sentido, nem o fato de Durval trabalhar o salva, afinal, seu negócio pode ser entendido como um trabalho menor, quase um hobbie, justamente por estar vendendo uma arte cujo modo de venda (disco) está ultrapassado. Durval vende relíquias que ninguém quer.

Ary França e Etty Fraser em Durval Discos (2002)
Divulgação: Ary França e Etty Fraser em Durval Discos (2002)

Com a chegada de uma criança, supostamente filha de Célia, é exposto o campo de expectativas: A família será transformada. A mãe, Carmita (Etty Fraser), ao prestar afeto à menina, lembra-se de fazer feijão. E Durval…bom, Durval começa a mostrar evidências de que vai finalmente crescer. Como fomos criados com essas histórias na televisão brasileira e até em filmes estadunidenses (veja O Paizão, por exemplo), o caminho a seguir parecia óbvio: a criança transformaria, como o trope da criança mágica e o empecilho da narrativa seria justamente sua partida

De certo modo, esse é o maior empecilho da história. No entanto, é no apego pela criança que viramos o disco, que chegamos ao lado B. Esse lado, como já sabemos como ele funciona, apresenta uma outra face do filme. Ela não é experimental como o experimental que conhecemos no Cinema, mas é autoral, é diferente.

SPOILER

No lado B, se me permitem spoilers, ficamos sabendo que a criança, Kiki (Isabela Guasco), foi vítima de um sequestro e uma das sequestradoras era Célia, a falsa empregada que a escondeu com a família.

Se Durval Discos já surpreendia, é nessa revelação que o filme cresce, afinal, Muylaert te faz aceitar aquele crível absurdo. E assim, cria suas próprias possibilidades, levando o filme para caminhos bem inesperados. É interessante como a diretora mantém o tom de comédia, mas nega qualquer situação mais Pedro Almodóvar, o que poderia ser um caminho viável. Aqui, no lado B, o completo caos expõe um trabalho surrealista dentro de uma estética realista. Durval não sabe mais distinguir a realidade de seu imaginário, ao ponto de se tornar totalmente orgânico e inquestionável um cavalo dentro de um quarto.

+++ Leia a crítica de ‘Raquel 1:1’, de Mariana Bastos 

Vinte e um anos após o seu lançamento, Durval Discos retorna ao cinema em sua versão remasterizada. A produção é o primeiro filme de Anna Muylaert, diretora que fixou seu nome na história do Cinema Nacional contemporâneo com o clássico instantâneo Que Horas Ela Volta?. Durval Discos é uma ótima estreia. É um grande filme e é maravilhoso que ele volte a ser exibido.

CLIQUE PARA ASSISTIR AO TRAILER

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FICHA TÉCNICA E MAIS INFORMAÇÕES:

TÍTULO ORIGINAL: Durval Discos
ANO: 2002
GÊNERO: Drama, Comédia
PAÍS: Brasil
IDIOMA: Inglês
DURAÇÃO: 1:36 h
CLASSIFICAÇÃO: 12 anos
DIREÇÃO: Anna Muylaert
ROTEIRO: Anna Muylaert
ELENCO: Ary França, Etty Fraser, Marisa Orth, Letícia Sabatella, Isabela Guasco, Rita Lee, André Abujamra e outros
AVALIAÇÕES: IMDB

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