Compilação de EP’s, ‘Gala’ é o Lush indo do Jangle-Pop ao Dreampop


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Em 1996, o Lush lançava seu terceiro álbum Lovelife. A MTV cedia muito espaço a tudo o que era Britpop, e o Lush era erroneamente engaiolada no estilo. Lembro dos vídeos de “Ladykillers” e “500” nos programas alternativos da madrugada. Achava bacana, especialmente por me lembrar The Breeders.

Naquele mesmo ano, encontrei à venda numa loja qualquer um álbum do Lush chamado Gala, que datava de 1990, e era da gravadora 4AD (mesma dos Pixies e do Breeders, e, na minha cabeça, aquilo só poderia ser um bom sinal). Comprei-o e, para minha surpresa, o álbum me levou além do Rock Alternativo ao qual eu já era habituado.

Gala compila os três EP’s iniciais do Lush, lançados no intervalo de outubro de 1989 a outubro de 1990. O disco, porém, traz as músicas em ordem reversa – do último ao primeiro.

O Lush teve papel importantíssimo na construção da cena Dreampop/Shoegaze do final dos anos 80. A banda foi formada em Londres, em 1987, por Miki Berenyi e Emma Anderson. Amigas desde a adolescência, período difícil para ambas, foi na música pop que as jovens ancoraram a amizade. Segundo elas, o interesse musical era amplo, e fez com que ainda adolescentes frequentassem shows de artistas como Tears For Fears, Culture Club e The Birthday Party, além de fazerem fanzines e se interessarem pela cena musical underground.

Naturalmente, evoluíram seus interesses para produzirem suas músicas, e passaram a integrar bandas distintas, antes de passarem a compor juntas, com Mikki e Emma dividindo vocais e guitarras. Quando isso aconteceu, não demorou muito para Steve Rippon (baixo), Meriel Barham (vocalista) e Chris Acland (baterista) se juntarem ao duo. De todos esses músicos, Acland era o único com alguma experiência real na música, tendo tocado em bandas punks em Manchester.

Em pouco tempo, a banda passou por mudanças, com Barham deixando os vocais para Miki, e Rippon cedendo lugar para Phil King. E assim o Lush gravou uma demo que agradou Ivo Watts-Russell, fundador do selo 4AD. Foi através do selo que a banda lançou os três EP’s: Scar (1989), Mad Love (1990) e Sweetness and Light (1990) – os três compilados em Gala.

Com tudo acontecendo tão rapidamente, a banda desconfiava de seu potencial, e permitiu que as pressões da gravadora, e dos produtores indicados por eles, direcionassem o som do Lush para algo situado entre o My Bloody Valentine (que arrancava elogios da crítica com seu álbum de estreia, Isn’t Anything, de 1988), e o Rock Alternativo em voga. Por isso é tão interessante ouvir a ordem reversa proposta em Gala, e entender que a a banda de som mais etéreo, intimista e delicado, na verdade, evoluiu de algo mais próximo ao Jangle-Pop ou ‘C86’ em seus primórdios. .

O álbum abre com “Sweetness and Light”, doce canção de Emma, e excelente cartão de visitas, em que as guitarras preenchem todo o ambiente, enquanto vocais angelicais e cheios de efeito versam sobre a visão do amor. “Sunbathing”, na sequência, evoca algo minimalista do Velvet Underground, simples na estrutura, mas poderosa em seus objetivos oníricos. Percebe-se alguma mudança quando chegamos em “De Luxe”, “Leaves me Cold”, “Downer” e (a segunda versão de) “Thoughtforms”, que pertencem ao EP Mad Love, percebemos uma proeminência das guitarras distorcidas, encontramos harmonias nas dissonâncias. Mal comparando, claro, é como se o Lush soasse menos Cocteau Twins e mais My Bloody Valentine.

Já as músicas do final do disco – que são as primeiras lançadas pela banda – “Baby Talk”, “Scarlet” e “Second Sight” se aproximam mais do que o Lush voltou a propor em 1996, ou seja, soam mais como um Rock Alternativo convencional, ainda que todas as características etéreas do Dreampop estejam presentes. Por um momento, “Second Slight” se torna um Hardcore rápido, com a curiosidade das guitarras estarem sem distorção nessa parte! “Bitter” lembra bastante The Wedding Present, e isso faz absoluto sentido com as influências e contemporaneidade da dupla criativa do Lush.

O Lush, através deste compilado Gala, fez minha incursão a um gênero ao qual eu não estava preparado para entender.

A urgência do som que eu ouvia na adolescência – o Hardcore e o Punk Rock – de certa forma era a antítese do que o Lush propunha naquele álbum, ainda que, muito tempo depois, tenha entendido que bandas que eu já adorava, como o Sonic Youth, tinham íntima ligação com o Shoegaze, através da No Wave e do Noise Rock.

(…)

A primeira vez que tive contato com uma música que me remetesse ao que, mais tarde, fui entender como Dreampop, foi com “Falling”, linda canção de Julee Cruise, que era tema de abertura da soturna série de TV oitentista Twin Peaks (1990-1991, 2017), do soberbo diretor David Lynch.

Uma voz angelical, sobre um som etéreo e atmosférico, tendenciosamente bucólico e melancólico.

Aquilo tanto me incomodava, quanto intrigava. Essa música sempre esteve ‘setada’ em minha mente como um referencial de música melancólica, mas eu ainda não tinha conhecimento ou entendimento musical para aquilo (talvez não tenha até hoje, mas isso é um detalhe).

Anos depois, já iniciado no Rock, ouvi “Only Shallow”, música do segundo álbum dos escoceses do My Bloody Valentine, o aclamado Loveless (1991). O sentimento foi idêntico, exceto pela ensandecida parede de guitarras que acompanhava o mesmo estilo vocal angelical de “Falling”. Era o que eu iria conhecer, pouco depois, como Shoegaze.

Shoegaze e Dreampop sempre estiveram, nas minhas cognições, dentro de uma mesma seara, ainda que soem e sejam diferentes. Lembro de ouvir várias bandas nos anos 90, de ambos estilos: This Mortal Coil, Cocteau Twins, Chapterhouse, Ride, Slowdive (essas duas últimas, junto com o MBV, hoje em dia, dentre as prediletas deste que vos escreve).

E foi exatamente nesse ponto em que eu conheci – e ignorei – o Lush.

O Lush durou até 1996. Miki e Emma sempre dizem em entrevistas que a banda não era autoconfiante o suficiente para suportar as pressões da indústria musical, e elas viveram a ebulição da música alternativa do início dos 90. O baterista Chris Acland tirou sua própria vida, diante da depressão e da pressão pela qual a banda passava.

+++ Leia a crítica do EP ‘Blind Spot’, do Lush

A banda se reuniu em 2016, com Justin Welch (ex-Elastica) na bateria e lançou o excelente EP Blind Spot. Miki Berenyi montou outros projetos, dentre eles o ótimo Piroshka. Emma Anderson lançará, em outubro/2023, o álbum Pearlies, seu primeiro solo.

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FICHA TÉCNICA E MAIS INFORMAÇÕES:

ANO: 1990
GRAVADORA: 4AD / Reprise
FAIXAS: 15
DURAÇÃO: 37:26
PRODUTOR: Tim Friese-Greene, Robin Guthrie, John Fryer
DESTAQUES: “Breeze”, “Sunbathing”, “Downer”, “Bitter”, “Scarlet”, “Sweetness and Light”
PARA FÃS DE: Chapterhouse, Ride, Cocteau Twins, Shoegaze, Dreampop, Indie-Rock

 

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