‘Souvlaki’, o álbum do Slowdive para o qual “o mundo” não estava preparado em 1993


Slowdive-1991

Na primeira metade da década de 80, é possível apontar três bandas responsáveis diretas por romperem barreiras estruturais no formato da música Pop: Cocteau Twins, Jesus and Mary Chain e Sonic Youth. Cada uma delas experimental ao seu modo, esse combo foi responsável por definir: 1 – um timbre característico de guitarra, ao combinar distorção e modulações, as chamadas guitarras etéreas; 2 – a possibilidade de uma combinação de melodias doces com barulhos ensurdecedores e vocais soterrados; 3 – a construção de arranjos de estrutura abstrata, combinado com o uso de camadas de barulho a partir de distorção, feedback e afinações incomuns.

Essa “fissura” indelével seria expandida por uma nova geração de bandas já na segunda metade dos mesmos 80, atravessaria as décadas posteriores, e seguiria influenciando bandas e artistas ao redor do mundo, permanecendo até os dias atuais.

O quinteto Slowdive foi uma dessas bandas tocadas por alguma (ou todas) dessas possibilidades sonoras propostas, mais que isso, adicionando outras. Entusiastas da música feita nos anos 80, pegaram o lado mais denso e soturno do Pós-Punk, de bandas como The Cure e Siouxsie and The Banshees; da Psicodelia sessentista, pescaram “Golden Hair”, de Syd Barret, por exemplo, e converteram em uma canção etérea e hipnótica; e ainda os anos 60 através da clássica “Some Velvet Morning”, de Nancy Sinatra e Lee Hazlewood.

Ainda primários em sua primeira encarnação, o Pumpkin Fairies, seria já sob a alcunha de Slowdive que se tornariam um dos ícones do chamado de Shoegaze. O termo foi cunhado de forma depreciativa, mas que ganharia outra conotação ao longo do tempo. Foi usado para se referir à forma como as bandas se apresentavam: cabisbaixos. Como qualquer outro rótulo fala nada sobre a sonoridade das bandas. O tempo trataria de dar algum sentido a isso.

Shoegaze serve muito mais para marcar uma época e um espaço geográfico (a Inglaterra), englobando um grupo de bandas que costumavam se apresentar juntas, irem aos shows umas das outras, e estarem no mesmo selo, a Creation Records. Se há proximidades sonoras, elas surgem a partir do compartilhamento das referências já citadas, cada um acrescentando outras possibilidades: O Ride, as harmonias vocais de bandas como os Byrds; o My Bloody Valentine, a continuidade da exploração do barulho, com um novo “olhar” para a alavanca de trêmolo e, posteriormente, a extrapolação da experimentações em estúdio com o processamento da sonoridade das guitarras. A certeza é de que a fórmula de todas as bandas ditas Shoegaze está na combinação dos vários efeitos de pedais: modulações (reverb, chorus, delay) ou distorções.

Gravado em 92, lançado em 93, pode-se dizer que Souvlaki, o segundo álbum do grupo de Reading, saiu a fórceps. O universo conspirava contra o seu lançamento. Apesar da boa colocação de Just for a Day (1991) na parada independente inglesa, a crítica os elegeu como um dos alvos para comentários mordazes sobre sua música. O próprio Alan McGee emitiu opinião totalmente desanimadora sobre o vasto material que a banda tinha preparado para o segundo disco. Todos muito novos (nas casa dos 21/22 anos), sentiram o impacto pesado das críticas negativas. Voltaram à estaca zero.

Buscando um norte, Neil Hastead convidou Brian Eno para produzir o disco. Apesar da recusa para o disco, Eno aceitou fazer uma parceria com o grupo. Desse contato surgem duas faixas: a atmosférica “Sing” (com clima de Ambient Music), que co-escreveu, e a bucólica “Here She Comes”, em que toca teclados. Paira a dúvida do quanto esse contato seria responsável pelas mudanças na sonoridade do grupo em Pygmalion (1995).

Deixando de lado a névoa espessa de seus primeiros singles e também de seu primeiro álbum, Souvlaki surge com uma sonoridade mais acessível, não exatamente Pop (ou comercial, como desejava McGee), mas não tão densa quanto de seus trabalhos anteriores, prova disso é a perfeição da magnética “Alison”, faixa que abre o disco e mostra um lado mais melodioso do Slowdive, mas não menos sombrio, já que a letra fala de um momento chapado de um relacionamento bagunçado: “Ouça com atenção e não fique chapada / Eu estarei aqui pela manhã / Porque eu só estou flutuando / Seu cigarro ainda queima… Alison, eu estou perdido / Alison, eu disse que estamos afundando / Não há nada aqui mas tudo bem”. Por seu lado, “When the Sun Hits” acerta em cheio ao trazer um refrão memorável e o que seria o primeiro solo da banda ao seu próprio modo.

Souvlaki é marcado por canções de suavidade e entorpecimento, de uma banda mais focada no resultado final de suas composições do que em arranjos complexos. Esse lado mais minimalista vai de encontro aos trabalhos do próprio Eno durante a década de 70. As camadas de barulho surgem, mas sem a mesma ênfase de antes, ajudam a dar maior dramaticidade aos arranjos, como se as guitarras gemessem uma melodia triste, agonizante.

Com uma maior diversidade de ambientações ao longo de suas 10 faixas, o álbum confirma a banda como umas das representantes máximas de uma vertente musical que tem no uso de texturas e camadas de guitarras sob modulações e efeitos os elementos sobre o qual sua música é construída. É um retorno às propostas do Cocteau Twins sob novas perspectivas, seja de timbres ou da maneira como os vocais se encaixam nas canções. Hoje o álbum pode ser chamado de um clássico do gênero, seja ele Shoegaze, Dream-Pop ou outro nome que se queira usar.

Souvlaki é um álbum sobre separação, trazendo letras bastante diretas. O rompimento de Rachel Goswell e Neil Hastead teve impactos profundos em Neil, que precisou se isolar por um tempo para voltar a reescrever canções. O sentimento amargo de desolação está em várias das letras, que abordam não só relacionamento, mas também sonho e uso de drogas: “Você sabe que eu sou sua adaga/ Você sabe que eu sou sua ferida / Achei ter ouvido você sussurrar / Acontece o tempo todo”, canta Neil na acústica e melancólica “Dagger”, faixa que antecipa o que o guitarrista faria anos depois em seu Mojave 3. A dor da perda é explicitada também em “$ Days”: “Quarenta dias e eu sinto sua falta / Estou tão chapado que perdi a cabeça”.

Se há álbuns que são lançados na época certa com a “música certa”, Souvlaki padeceu por ter o efeito oposto. Num cenário musical polarizado por duas vertentes: o Grunge (já em descenso) e o Brit-Pop (em ascensão), naquele momento o mundo não estava preparado para os acordes lentos e melancólicos de “Machine Gun”, “Souvlaki Space Station” (um reverberante turbilhão sonoro conduzido por riff encharcado de Delay e uma linha de baixo Dub), “When The Sun Hits” (onde os riffs atingem a estratosfera) e “Melon Yellow” (linha de baixo profundíssima!); ou para o lado mais bucólico de “Sing”, “Here She Comes” e a arrasadora “Dagger”. Junto a isso, a ideia para muito era de que o My Bloody Valentine havia resumido tudo que precisava ser dito em Loveless, lançado dois anos antes.

+++ Leia a crítica de ‘Whirlpool’, do Chapterhouse

O tempo tratou de mostrar as qualidades do álbum. Sua influência em bandas que buscam referências na vertente mais sonhadora daquele período, em geral, se aproximam mais da proposta do grupo (e do Lush), do que de quaisquer outros de seus pares. Souvlaki entra fácil na lista de grandes álbuns da década de 90, a despeito da frieza com que foi recebido.

O retorno triunfante da banda aos palcos em 2014, vinte anos após sua dissolução, e o lançamento do ótimo e bem recebido álbum homônimo, em 2018, fortalecem os argumentos de que o disco (assim como tantos outros) foi um álbum incompreendido quando do seu lançamento, perspectiva mais nítida passados 30 anos de seu lançamento.


Slowdive - Souvlaki

 

 

Ano | Selo: 1993 | Creation Records
Faixas | Duração: 10 | 48:43
Produtor: Slowdive
Destaques: “Alison”, “40 Days”, “Souvlaki Space Station”, “When The Sun Hits”, “Dagger”
Pode agradar fãs de: Shoegaze, Dreampop, Cocteau Twins, My Bloody Valentine, Lush, Chapterhouse, Minor Victories

 

 

 


 

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