Revelador, ‘Nothing Compares’ mostra a trajetória de Sinéad O’Connor


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16 de outubro de 1992. Um entusiasmado Kris Kristofferson anuncia uma artista que é sinônimo de coragem e integridade: Sinéad O’Connor. Entre vaias, aplausos e um barulho descomunal, Sinéad olha diretamente para a multidão. Em segundos tensos que parecem durar uma eternidade, o close é na expressão facial e também no gestual corporal da jovem cantora irlandesa, então com 25 anos, que tenta se mostrar serena, impassível. Sinéad parece aguardar o silêncio ou, simplesmente, pensar o que fazer. É o show que celebra os 30 anos de carreira de Bob Dylan. É o início e o fim do premiado documentário Nothing Compares.

Nascida em Dublin (Irlanda), na década de sessenta, de uma família irlandesa tradicional, logo extremamente religiosa, Sinéad viu sua vida mudar por completo após a separação dos pais. No período que morou com sua mãe, sofreu diversos tipos de abusos, que lhe deixariam cicatrizes psicológicas profundas, e que marcaram não só sua vida como também sua música.

Com ritmo ágil, Nothing Compares compila apresentações e entrevistas de época, além de narrativas e reflexões atualizadas da cantora. Sobre a sua mãe, em entrevista de época, Sinéad traz um retrato assustador: “Minha mãe era uma mulher violenta. De forma alguma era mentalmente sã. E era física, verbal, psicologicamente, espiritual e emocionalmente abusiva”. Concluindo, já mais recentemente: “Minha mãe era uma fera. Eu conseguia acalmá-la com minha voz”.

Sinéad rememora momentos traumáticos e como isso lhe feriu e deixou cicatrizes. Ainda criança, praticamente viveu no jardim de sua casa por alguns dias, impedida por sua mãe de entrar na residência. O acontecimento foi registrado na faixa “Troy”, do álbum The Lion and The Cobra (1987), estreia da cantora, descrito como “uma forma de terapia”.

O documentário tem a própria Sinéad como umas das vozes narradoras. Ela conta, com sobriedade, sobre esse período doloroso de sua vida, e como a Igreja Católica foi responsável direta por isso, devido a grande influência que exercia na vida e costumes do povo irlandês, e de forma mais nociva sobre as mulheres, que transferiam para os filhos uma vida de traumas e abusos.

Para dar uma ideia do panorama social da Irlanda naqueles anos, Nothing Compares utiliza trechos do documentário Rocky Road to Dublin (1967), do jornalista irlandês Peter Lennon e do diretor de fotografia francês Raoul Coutard. Para Lennon, a Irlanda foi dominada pelo isolacionismo cultural, e o tradicionalismo clerical na época de sua criação.

Bob Dylan aparece como responsável direto pela decisão de seguir a carreira musical. O impacto causado por “Gotta Serve Somebody”, canção do álbum Slow Train Coming, de Dylan, mudou a vida de Sinéad por completo, ela afirma logo no início. Aos 15, ela foi internada no Magdalene Asylum por 18 meses. Novamente um ambiente religioso e opressor. Escrever e cantar foram as formas encontradas por Sinéad para expurgar dores, mas também gritar.

Jeanette Byrne, sua professora de música, é a responsável indireta pela sua carreira. Sua “voz” seria descoberta na festa de casamento de Jeanette, após cantar “Evergreen”, de Barbra Streisand. Graças a isso ela passaria a integrar bandas e adentrar de forma efetiva o meio musical, até assinar com a Ensign para a gravação de um álbum.

O sucesso de The Lion and The Cobra (1987) levaria a jovem cantora a lugares impensados, incluindo ao famigerado Top of the Pops. Mas seria com Do Not Want What I Haven’t Got (1990), puxado pelo estrondoso sucesso da emocionante “Nothing Compares 2 U” que conquistaria o mundo com sua voz poderosa, na fragilidade e na força de interpretação. Sinéad mostra sua veia politizada na descomunal “Black Boys on Mopeds”, um hino contra o racismo.

É curioso e ao mesmo tempo desolador que, até o título do documentário faça menção à canção, mas que “Nothing Compares 2 U”, composição de Prince, tenha sido impedida pelo espólio do cantor de ser usada no filme.

Nothing Compares apresenta a Sinéad engajada na luta por causas sociais, contra a misóginia, e como ela inspirou e plantou a semente de muitos movimentos e mudanças que viriam a surgir/acontecer nas décadas posteriores, inclusive na própria Irlanda. Na cerimônia do Grammy de 89, ela aparece com um alvo pintado em um dos lados da cabeça em solidariedade ao Public Enemy e contra o evento, que se recusou a premiar álbuns de Rap e Hip-Hop. Em sua turnê pelos Estados Unidos, na década de 90, Sinéad proibiu que fosse tocado o hino do país antes do seu show.

Seu posicionamento firme e sua luta contra os abusos que vinham sendo praticados no seio da Igreja Católica (amplamente conhecidos e que viriam a torna anos depois), sem que nada fosse feito, a levaria a rasgar e queimar a foto do Papa João Paulo II durante uma apresentação no programa de TV Saturday Night Live na TV americana: “Combata o verdadeiro inimigo”, ela disse ao fim. A apresentação aconteceu no dia 03 de outubro de 1992, dias antes do show comemorativo no Madison Square Garden. Sinéad ainda cantou “War”, de Bob Marley, modificando a letra para falar de abuso infantil.

Após esse acontecimento de forte impacto e repercussão, ela passaria a ser massacrada pelo público, mídia e, também, muitos artistas – cancelada seria o termo nos dias atuais. Por outro lado, Sinéad atraiu a atenção e influenciou artistas que se sentiram representados pela sua atitude corajosa. Pioneira do movimento punk feminista Riot Grrrl, Kathleen Hanna (Bikini Kill) é uma das artistas que aparecem no documentário e discorre sobre o impacto das atitudes e importância da artista irlandesa não só para a música como para os movimentos de luta por direitos.

16 de outubro de 1992. Sinéad acena negativamente para os músicos, parte deles deixa o palco, outros permanecem sentados. Kristofferson a incentiva. A canção que seria apresentada, bastante delicada, se tona inviável. Sinéad, mais uma vez, despeja os versos de Bob Marley, agora com uma fúria assustadora: “Até que a filosofia que torna uma raça superior / E outra inferior, seja finalmente permanentemente / Desacreditada e abandonada, haverá guerra / Eu digo guerra. Até que não existam mais cidadãos / De 1º e 2º classe em qualquer nação / Até que a cor da pele de um homem / Não tenha maior significado que a cor / Dos seus olhos haverá guerra”.

+++ Leia a crítica de ‘Autoluminescent’, sobre o guitarrista Rowland Howard

Documentários, muitas vezes, são homenagens póstumas. Felizmente, não é o caso de Nothing Compares (Showtime, 2022), estreia em longa-metragem da roteirista e diretora Kathryn Ferguson. O filme é um recorte (de 87 a 92) na carreira da cantora irlandesa e ativista Sinéad O’Connor, uma artista no sentido real da palavra, à frente de seu tempo, e que por isso pagou o preço. Mas eternizou seu nome na história da música, de uma vez por todas, no último dia 26 de julho.

CLIQUE PARA ASSISTIR AO TRAILER

Poster do documentário Nothing Compares, sobre Sinéad O'Connor

FICHA TÉCNICA E MAIS INFORMAÇÕES:

TÍTULO ORIGINAL: Nothing Compares
ANO: 2022
GÊNERO: Biografia, Musical, Documentário
PAÍS: Reino Unido / Irlanda
IDIOMA: Inglês
DURAÇÃO: 1:37 h
CLASSIFICAÇÃO:
DIREÇÃO: Kathryn Ferguson
ROTEIRO: Eleanor Emptage, Kathryn Ferguson, Michael Mallie
ELENCO: SInéad O’Connor, Gay Byrne, John O’Connor,
Jeannette Byrne, John Reynolds e outros
AVALIAÇÕES: IMDB | Rotten Tomatoes

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