‘Emancipação’ é um olhar problemático sobre resistência escrava


Will Smith no filme Emancipação

A Guerra Civil Americana, também conhecida como Guerra de Secessão (1861-1865) é um dos principais eventos que Hollywood se tornou especialista em representar. Tal acontecimento é apresentado desde os primeiros curtas do cineasta D. W. Griffith como The House with Closed Shutters (1910) e nunca perdeu seu lugar ao sol, sendo responsável por inspirar a obra-prima A General (1926), o clássico E o Vento Levou (1939) e proporcionar uma das melhores partes de Três Homens em Conflito (1966).

Nas últimas décadas, entretanto, a Guerra Civil ganhou novas roupagens. Após uma revolução historiográfica em 1970, o fazer historiográfico voltou-se para a história dos marginalizados, dos vencidos e esquecidos pela ‘‘história oficial’’. Através das novas ondas de pesquisa, registros sobre a participação de afro-americanos no conflito e suas vivências no sistema escravista foram sendo ‘‘descobertas’’ e acabaram ganhando espaço através de grupos engajados, deixando Hollywood, novamente, com um bom material em mãos.

Todavia, Hollywood ainda deve muito no que se refere a histórias protagonizadas por figuras negras abolicionistas ou sobre a experiência da escravatura em tempos de guerra sob uma perspectiva negra. Desse modo, Emancipação acaba como mais um indicador dessa falha, ao reproduzir atos e situações similares aos acontecimentos de Harriet (2019) que reduzem a experiência negra em: sofrimento, fuga, luta, mais sofrimento e, enfim, liberdade.

Emancipação é uma adaptação da história do haitiano Whipped Peter (em português, Peter Chicoteado), ex-escravo cuja fotografia de suas costas chicoteadas tornou-se símbolo da luta contra a escravidão. O filme relata toda resistência de Peter ao trabalho forçado, sua luta para sobreviver e, posteriormente, seu embate contra todo um sistema que, por séculos, violentou uma diversidade de povos devido à cor da pele.

Still do filme Emancipação, com Will Smith

Os produtores de Emancipação, assim como seu diretor, Antoine Fuqua, ao realizar tal filme, demonstram que não aprenderam nada com a recepção pública de 12 anos de Escravidão (2013) e continuam a evocar o padrão hollywoodiano de tratamento a temática, onde a complexidade do sistema escravista é propositalmente esquecida, dando lugar a uma dinâmica na qual escravos viviam em constante situação de hostilidade e, por isso, estavam totalmente alienados a reproduzir uma passividade extrema.

Ao buscar representar uma vitimização completa da população escravizada – como se os mesmos não se revoltassem ou resistissem, da sua maneira, ao sistema –, Emancipação, por exemplo, omite que um escravo com mão de obra especializada, como foi o caso de Whipped Peter, descrito como o melhor ferreiro de seu antigo dono, jamais sofreria tanto risco de morte nas mãos de feitores apenas por ser rebelde, mesmo em tempos críticos. O filme também adere a conveniência anacrônica de julgar um negro liberto que caça escravizados, omitindo que tal ação também era uma maneira de se livrar das amarras da escravidão, mesmo que individualmente.

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Em suma, a escravidão, em Emancipação, se torna um plano de fundo para uma história de heroi vazia. Portanto, o filme não quer nos tornar testemunhas oculares de todo um sistema opressor e sua complexidade, a produção apenas quer nos entregar o que qualquer filme de ação pode fazer: uma jornada de um herói em fuga repleta de brutalidade, combates épicos e um final feliz.


Poster do filme Emancipação, com Will Smith

MAIS INFORMAÇÕES:

Título Original | Ano:  Emancipation  | 2022
Gênero: Ação, Drama
País: EUA
Duração: 2:12 h
Direção: Antoine Fuqua
Roteiro: Bill Collage
Elenco: Will Smith, Ben Foster, Charmaine Bingwa, Gilbert Owuor, Ronnie Gene Blevins, Aaron Moten e outros
Data de Lançamento: 09 de dezembro de 2022 (Brasil)
Censura: 16 anos
Avaliações: IMDB | Rotten Tomatoes

 

 


 

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