Jornada em busca de inspiração rende mais um álbum belo e surpreendente de PJ Harvey


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Crédito: Steve Gullick

Neil Young declarou certa vez que a inspiração é como um animal selvagem: se você se aproximar de forma afoita, ela sai correndo. Ao final da turnê de Hope Six Demolition Project, de 2016, PJ Harvey ficou em dúvida se teria motivação para fazer música novamente, e, em especial, se teria condições de continuar se reinventando e criando algo instigante e diferente. Essa jornada criativa em busca da inspiração acabou sendo o grande mote para a composição de I Inside The Old Year Dying, décimo disco da cantora, gestado de forma lenta e cuidadosa e tendo como ponto de partida poesias escritas e publicadas por Harvey em 2022 com o título de Orlam.

No livro de poemas, a camaleoa britânica do Rock voltou-se para sua própria história, fazendo uso extensivo de dialetos de sua região de nascimento (Dorset, oeste da Inglaterra, onde vive até hoje), em um contexto idílico e pontuado de elementos naturais e questionamentos existenciais

O novo disco transforma em música 12 desses poemas, e o resultado é mais um triunfo criativo de uma carreira em que não faltam pontos altos. Dessa vez, Harvey não constrói um personagem como nos últimos discos, em que usava trajes marcantes para realçar sua persona criativa. Ela aparece nos videoclipes e material de divulgação em trajes comuns e despojados.

Ao contrário dos projetos conceituais claros e voltados à uma análise histórico-contextual em terceira pessoa de Let England Shake (de 2011, que aborda a participação britânica na Primeira Guerra Mundial) e Hope Six Demolition Project (que se originou de uma viagem da cantora pelo mundo em busca de regiões marcadas pela miséria e pela violência), desta vez o foco é reflexivo e introspectivo.

PJ é uma das artistas mais reservadas que conheço, e mesmo quando cria algo mais do espectro pessoal, não dá para detectar muita relação com acontecimentos palpáveis. E dessa vez não é diferente, pois os poemas são carregados de mistério. A música, como de costume, é criada em torno da voz de PJ, e com o objetivo de magnificar os efeitos das soluções melódicas instigantes da qual ela é mestre.

Os parceiros de longa data Flood e John Parish atuam na produção com a delicadeza de costume, preenchendo os espaços com detalhes sutis e certeiros que em vários momentos lembram a teia sonora soturna e esparsa dos últimos discos de Nick Cave. Há mais sintetizadores do que de costume para um álbum de Harvey (talvez só Uh Uh Her tenha tantos elementos eletrônicos), mas eles são balanceados por violões e guitarras magníficos e sutis e por sons de campo, como os de crianças brincando e o de água corrente, reforçando uma abordagem que beira o naturalismo. I Inside The Old Year Dying tem ares folclóricos e parece exaltar a simplicidade, mas suas mensagens são crípticas.

A faixa mais impactante é a de abertura, “Prayer at the Gate”, que conta com uma performance vocal magnífica de PJ e um infectante “Tchu ru ru tchu tchu tchu” que cola na cabeça imediatamente. Ela é seguida por “Autumn Term”, cuja abordagem pastoral faz lembrar Let England Shake. A cantora faz diversas vozes que são moduladas de forma irregular e criam uma sensação peculiar. A espiritualidade também marca presença, e em “Noiseless Noise” ela relaciona Elvis Presley e Jesus Cristo por meio do verso “Love me Tender”, mas de forma impenetrável. Aliás, o verso é um elemento de conexão que se repete em três faixas.

Algumas músicas, como “A Child’s Question, July”, lembram o Trip-Hop do Massive Attack, especialmente por causa da percussão e da ambientação claustrofóbica. Os sons amorfos que dominam “All Souls” contrastam com o ritmo um pouco mais acelerado e riff-based da faixa-título. O disco se encerra com a magnífica “Noiseless Noise”, cuja parte central carregada de guitarras distorcidas e maquinais é emoldurada por trechos iniciais e finais silenciosos e imersivos.

A capa do registro apresenta um pequeno galho, elemento natural utilizado para marcar as estações do ano na tradição de Dorset, e reforça o conceito do tempo e da paciência na busca criativa que se faz presente nas entrelinhas das letras, nos vários títulos de canções que mencionam meses e estações do ano e no próprio título do álbum.

I Inside The Old Year Dying não é um disco fácil e acessível – e qual disco de PJ Harvey é? Acho que só Stories From The City, Stories From the Sea, e olhe lá… Mas também não é totalmente anticomercial, pois a voz de PJ é monumental e ao longo dos 39 minutos de audição são várias recompensas para quem é avesso à experimentações. E pensando bem, quem é fã da artista com certeza está disposto a mergulhar de cabeça na obra e descobrir os diversos prazeres escondidos.

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São poucos os artistas que conseguem gerar tanta expectativa por um álbum novo mesmo após mais de 3o anos de carreira, e mais raros ainda os que conseguem fazer jus ao hype. PJ Harvey está neste seleto grupo, e um dos segredos parece ser a sua abordagem cuidadosa e respeitosa com relação a esse animal selvagem chamado “inspiração”.

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FICHA TÉCNICA E MAIS INFORMAÇÕES:

ANO: 2023
GRAVADORA: Partisan Records
FAIXAS: 12
DURAÇÃO: 39:38
PRODUTOR: Flood, John Parish, PJ Harvey
DESTAQUES: “Prayer at the Gate”, “Noiseless Noise”, “Noiseless Noise”
PARA FÃS DE: Rock Alternativo, Folk-Rock

 

 

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