‘O Apanhador no Campo de Centeio’ e as Canções da Inocência Perdida de Holden Caulfield


O Apanhador no Campo de Centeio (The Catcher in the Rye, 1951) é um dos romances mais célebres e discutidos da Literatura Mundial. Escrito pelo norte-americano J.D. Salinger (Jerome David Salinger, 1919-2010) e publicado pela primeira vez em forma seriada de 1945-1946, definiu muito mais que uma era na consciência jovem, mas a própria juventude.

O livro segue os acontecimentos que procedem a reprovação e expulsão de Holden Caulfield, nosso narrador/personagem, do internato de Pencey, em Nova Iorque. Holden, então, decide se aventurar pela metrópole antes que seus pais tomem parte de seu fracasso escolar. Passado na década de 40 e sob o olhar de um jovem em inquietude pulsante, (mas com algum dinheiro, diga-se de passagem) há aqui muito a dizer.

A literatura nesse livro não se basta no bom uso de palavras para se contar uma história. Pode-se argumentar, inclusive, que não há uma narrativa bem delineada ao redor das linhas do romance. Mas o que é uma história se não o espantamento com a vida comum? Perceber em uma sequência de acontecimentos no tempo uma surpresa, algo que fuja ao que consideramos normal – trivial?

É o inconformismo jovem que percebe a anormalidade das convenções. Em O Apanhador no Campo de Centeio, a vida e seu sentido pré-traçado são o inadaptável, o conflito a que necessita toda narrativa – toda história. Holden Caulfield se vê como um herói em seu próprio mundo, um mundo recheado de “phonies” (falsos) que ditam as regras e compõem o jogo. Nesse jogo, Holden não percebe seu lugar. Sua missão está em curso mas nunca é concluída.

O desconforto é parte importante do amargor deslizante do muito que nosso herói em rebeldia anedônica tem a contar. Holden Caulfield derrama uma agonia esperançosa por entre suas palavras. Sempre direcionadas a um “você”, que escuta a prosa em fluxo confinar a inquietude de uma juventude que quer se perder por não ver os sentidos do caminho da conformidade.

Sem nunca parar de ser o herói, ele é também, o vilão de si mesmo.

Holden nunca percebe sua capacidade quando se vê como personagem ativo de sua própria vida. Em contraste, passa tempos idealizando cenários e fantasiando sobre si mesmo e o que faria quanto ao mundo, para então dizer que “I don’t have the guts to do it, anyway” (Eu não tenho o culhão para fazê-lo de qualquer forma). Existe, inclusive, a figura de Jane Gallagher, amiga de Caulfield que apenas existe ou nas memórias, ou como motor de algumas de suas ações, ou na vontade das ações que ele nunca realizou. Isso, em fato, é uma ótima tradução da juventude como tempo da vontade. Vontade, essa, que é muitas vezes frustrada.

Ao redor das linhas, Holden sente sintomas de ansiedade e depressão – que são muito melhores compreendidos nos dias de hoje do que eram na década de 40. Ele usa muito diretamente a palavra depressed enquanto descreve como se sente em sua saga pelas ruas numeradas de Nova Iorque. A metrópole norte-americana, é, inclusive, ambientada de uma maneira tão familiar ao interlocutor que a cidade passa a ser um personagem nas vertigens juvenis de Caulfield.

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Foto da edição nacional do livro “O Apanhador no Campo de Centeio”

Para Holden a perda da inocência é o trauma que faz pulsar o seu desgosto nesse mundo de phonies. Enquanto percebe que para se adequar à vida adulta deve dizer coisas como, em suas palavras, “bom te conhecer”, quando na verdade não acha aquilo bom. Ele conclui que “(…) Se você quer se manter vivo, tem de fazer esse tipo de coisa”. Holden percebe nas crianças, porém, uma genuinidade a que ele muito quer proteger. Sua irmã mais nova, Phoebe é a figura que mais tem impacto em sua vida, e é a observando em um carrossel, o momento em que finalmente se diz feliz.

Salinger ainda imprime sutilmente em seu romance questões de grande peso. Como, por exemplo, a constante penumbra da morte e do suicídio entre os jovens, assim como a questão do abuso sexual.

Tratada aqui de forma não explícita e que deixa espaço para as interpretações do leitor. A escrita de Salinger, que entra nos maneirismos e vícios de linguagem de um adolescente nova-iorquino dos anos 40 direciona a prosa como um diálogo, em que a complexidade está na ausência da presença explícita da complexidade.

Palavrões e expressões coloquiais muitas vezes antiquadas se unem aqui a outras inventadas pelo próprio autor em uma exploração criativa da linguagem que gosta de ser insólita e incomodar. Nisso, Salinger reflete a juventude e expõe todas as feridas abertas no espelho. Feridas não cicatrizadas até o dia em que escrevo.

Talvez por isso esse seja um dos romances mais controversos da literatura em língua inglesa. Talvez por isso que tenha sido proibido em várias escolas ao redor dos estados conservadores daqueles EUA. Talvez por isso que O Apanhador no Campo de Centeio seja tão mal interpretado e divida tantas opiniões. Nele, Salinger revela as imagens de um quadro a que se convenciona esconder. A juventude existe aqui como em poucos lugares na arte. E ela ainda está por aí, com seus tiktoks e twitters. E está por aí com a mesma sensação de desamparo e agonia abafada das palavras de Salinger.

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