Somos todos uma soma de nossas experiências, traumas, conquistas e perdas, ou ainda seriamos os mesmos se pudéssemos pular só as partes ruins da nossa história?
Bom, parece que em se tratando da mitologia envolvendo o Homem-Aranha, bem como de grande parte dos heróis que permeiam a nossa cultura pop, a resposta a esta pergunta sempre esteve muito clara: todos inevitavelmente precisam passar por algum tipo de trauma em suas trajetórias.
O Batman existiria caso os seus pais não tivessem sido mortos na frente do pequeno Bruce Wayne? Por onde andaria o bebê de Krypton se todo seu planeta não tivesse sido dizimado? O abobalhado Peter Parker usaria seus poderes contra o crime se não fosse pela morte do seu amado tio Ben? Etc.
Parece que existe uma regra universal nos quadrinhos ditando que todo herói sofra tragédias inevitáveis e irreparáveis para que se tornem mais fortes e adquiram um maior senso de propósito. Chamados pelos especialistas de “eventos cânones”, essa regra vem sendo cumprida à risca por décadas nas mais variadas formas e representações artísticas.
Até que surge uma animação diferenciada, que, em um exercício corajoso de metalinguagem, trata de propor a quebra desse antigo paradigma e ainda faz com que a plateia “irresponsavelmente” torça muito para que isso aconteça.
Essa é a espinha dorsal construída impecavelmente nas duas horas e vinte minutos do belíssimo filme Homem-Aranha: Através do Aranhaverso. Trata-se da parte dois de uma trilogia que já está mudando para sempre o modo como se pensa e se faz animações atualmente.
O ponta pé inicial desse projeto veio ao mundo em 2018, com o lançamento de Homem-Aranha no Aranhaverso, no qual, acompanhamos a jornada de Miles Morales, um adolescente negro e latino que vive no Brooklyn e que acidentalmente é picado por uma aranha radioativa e logo após testemunha a morte do Peter Parker. Ao mesmo tempo, ele descobre que existem outras versões do Homem-Aranha em diferentes dimensões paralelas – o multiverso. Miles então precisa aprender a lidar com seus novos poderes e com a responsabilidade de impedir o colapso do multiverso ao lado de seus novos amigos aracnídeos.O primeiro filme foi um enorme sucesso de crítica e público, ganhando o Oscar de Melhor Animação em 2019. Além disso, foi elogiado por sua inovação visual e sonora, misturando diferentes estilos de animação e referências à cultura pop. Mas o que realmente fez o filme se destacar foi a sua abordagem ousada e criativa da metalinguagem.
A metalinguagem é a capacidade de usar uma linguagem para falar sobre si mesma ou sobre outra linguagem. No caso do filme, ele usa a linguagem cinematográfica para falar sobre a própria linguagem dos quadrinhos e dos filmes de super-heróis. Ele brinca com as convenções do gênero, como as origens dos personagens, os clichês narrativos, os elementos visuais e sonoros, as referências intertextuais e as expectativas do público.Estes aspectos mostram que o filme está consciente da sua própria linguagem e da sua relação com outras mídias. Ele não se limita a reproduzir as mesmas fórmulas de sempre, mas sim a questioná-las e a subvertê-las. Ele também convida o espectador a participar desse jogo de metalinguagem, reconhecendo as referências e os easter eggs, e se divertindo com as surpresas e as reviravoltas.
Mas a metalinguagem não é apenas uma forma de entretenimento ou de homenagem. Ela também é uma forma de desconstrução e de crítica. O filme se utiliza disso para questionar os valores e os significados que estão por trás das histórias de super-heróis.
Ele brinca com as possibilidades narrativas do cinema e dos quadrinhos, criando uma obra original e inovadora, sem se prender aos padrões estabelecidos pelo mercado ou pela indústria, mas sim aos seus próprios objetivos artísticos e culturais.
Assim, o filme usa a metalinguagem para fazer com que o herói lute por sua própria desconstrução. Ele faz com que o Homem-Aranha se liberte das amarras das suas histórias anteriores, das suas tragédias pessoais, das suas expectativas sociais e das suas limitações criativas. Que se reinvente, se multiplique, se diversifique e se expanda.
O resultado é tão poderoso que faz com que os filmes anteriores do aracnídeo, em live action, pareçam rasos. É como se estas animações estivessem de alguma forma à frente de seu tempo, traçando as suas próprias regras do jogo.
Enquanto o filme de 2018 didaticamente explorava o conceito quase intocado de multiverso – algo que posteriormente foi explorado a exaustão pelos filmes e séries da Marvel, e até mesmo pelo vencedor do Oscar de Melhor Filme, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (primeiro lugar em nossa Lista de Destaques de 2022) – o segundo filme vem para propor o conceito de quebra dos citados “eventos cânones”. Algo que fatalmente deverá se tornar tema recorrente em inúmeras produções futuras, mas que, por enquanto, foi deixado no ar e que só será confirmado – ou não – quando a terceira parte, prevista para 2024, chegar aos cinemas.
+++ Leia a crítica de ‘The Batman’, de Matt Reeves
O fato é que, independente do desfecho da trama, estas produções colocam os filmes feitos em animação em um patamar digno e muito merecido, que extrapola as limitações que o mercado sempre impôs a esse tipo de linguagem artística. Um novo posicionamento e reconhecimento por parte da indústria se faz urgente e necessário, pelo próprio bem da indústria. Afinal, enquanto algum herói se pendura por entre edifícios, testemunhamos o verdadeiro poder da arte: o de transformar a própria arte e consequentemente o mundo ao nosso redor.
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FICHA TÉCNICA E MAIS INFORMAÇÕES:
TÍTULO ORIGINAL: Spider-Man: Across the Spider-Verse
ANO: 2023
GÊNERO: Animação, Ação, Aventura
PAÍS: Estados Unidos
IDIOMA: Inglês
DURAÇÃO: 2:20h
CLASSIFICAÇÃO: 10 anos
DIREÇÃO: Joaquim Dos Santos, Kemp Powers, Justin K. Thompson
ROTEIRO: Phil Lord, Christopher Miller, Dave Callaham
ELENCO: Shameik Moore, Hailee Steinfeld, Brian Tyree Henry, Jake Johnson, Oscar Isaac, Jason Schwartzman, Issa Rae, Daniel Kaluuya e outros
AVALIAÇÕES: IMDB | Rotten Tomatoes
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