Após cinco décadas de prolífica carreira, o Diretor norte-americano Steven Spielberg decidiu voltar sua atenção para aquela que talvez seja a maior, mais emocionante e mais complexa de todas as histórias que ele poderia levar às telas do cinema: a história de sua própria vida. Conforme ele mesmo comenta em um simpático vídeo prévio à exibição de Os Fabelmans, este, sem dúvida, é o seu projeto cinematográfico mais pessoal.
Narrativas autobiográficas costumam ser uma verdadeira faca de dois gumes. Ao mesmo tempo em que alguém detém o privilégio de ser a pessoa capaz de falar da maneira mais completa, autêntica e interessante a respeito de si própria, por outro lado, em contrapartida, a falta de distanciamento frente aos acontecimentos vividos não apenas obtusa a visão, como também nos leva a transformar em campo minado o terreno sobre o qual traçamos uma trajetória narrativa visando expor ao público quem somos / fomos, correndo-se o risco de tornar tudo, por assim dizer, uma mera fabulação em caráter de auto exaltação ou, então, expiação.
Em Os Fabelmans, o primeiro ponto a se destacar é o fato de Spielberg ter escapado dessa armadilha graças à sua sagacidade em abordar os eventos apresentados de maneira mediada, no campo aberto das possibilidades narrativas. Dito de outra forma, ainda que os fatos do longa digam respeito, de uma forma ou de outra, fielmente ou não, àquilo que o diretor viveu durante a sua infância e adolescência, em última instância eles servem de sustentação à existência diegética dos Fabelmans – uma imaginária típica família norte-americana de classe média e origem judia; não se referem imediatamente, portanto, aos Spielbergs.
Com isso, Os Fabelmans situa-se na zona perfeita que permite ao cinema realizar-se em toda sua potencialidade enquanto arte. Ele opta por não ficar preso a uma história estéril, previsível e insípida, contada como tantas outras no passado ou no porvir; antes, todavia, faz de sua obra um caso emblemático de encenação movida pelo poder mágico, quase transcendental do Cinema em contar histórias, sejam elas quais forem, reais ou não, de natureza documental, fantasiosa ou baseada na realidade. Sendo assim, não importa tanto se as vivências de Sammy Fabelman (Mateo Zoryan – criança / Gabriel LaBelle – adolescente) – personagem fictício que encarna espiritualmente o cineasta – tenham sido fidedignas às vivências do jovem Steven Spielberg. Importa, sim, que a narrativa tecida tenha conseguido evocar, eficientemente, a personalidade do indivíduo que, ainda precocemente, mostrou-se tão criativo, sonhador e resiliente.
Outro aspecto interessante é a maneira como Spielberg conduz seu filme no sentido de torná-lo não apenas uma grande carta de amor à Sétima Arte, na qual a metalinguagem é acionada para pensar e expor a sua prática nos anos iniciais de direção amadora.
Na verdade, a proposta efetivada por ele acaba elevando a força narrativa de Os Fabelmans, uma vez que o próprio filme é estruturado de modo a prestar um tributo ao cinema através dos distintos tons dramatúrgicos de suas cenas e sequências, cada qual aproximando-se semioticamente de algum (sub)gênero cinematográfico – temos aqui, assim, o diretor acionando suas memórias por intermédio de elementos formais característicos dos filmes de Western, Guerra, Drama, Teen, Experimental, Monstro, Comédia, Romance, etc. Isso é importante, sobretudo, para conferir dinamismo à obra, composta por pequenos grandes momentos que vão se sucedendo num ritmo cadenciado na maior parte do tempo.
É impossível não dar destaque ao elenco, desde as atuações individuais até ao entrosamento coletivo, algo que reforça bastante o movimento de tensionamento e distensionamento das relações no seio familiar dos Fabelmans, em particular aquelas envolvendo o casal Burt (Paul Dano) e Mitzi (Michelle Williams). Esta, por sinal, funciona como um dos eixos de sustentação do filme, uma vez que a personalidade dionisíaca de Mitzi, ligada às artes, tal como a do filho Sammy, atua como agente de entropia naquela família. Ela é, por assim dizer, uma nota dodecafônica em meio à sinfonia programática orquestrada pelo esposo Burt, um engenheiro eletrônico dedicado à emergente indústria da computação.
Em suma, Os Fabelmans mostra-se eficiente tanto ao nível técnico como no que diz respeito ao desenvolvimento de seu conteúdo, pautado por memórias pessoais ainda bastante vivas e inspiradoras.
Com seu novo longa-metragem, que merecidamente recebeu sete indicações ao Oscar (Melhor Filme, Direção, Atriz, Ator Coadjuvante, Roteiro Original, Direção de Arte e Trilha Sonora Original), Spielberg conseguiu demonstrar na prática que, nos dias atuais, o bom Cinema, aquele que te deixa com um sorriso bobo no rosto ao fim da sessão, não demanda, necessariamente, uma adesão a formatos narrativos pseudoinovadores ou mesmo a histórias pautadas por reviravoltas vertiginosas.
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Mesmo considerando-se que não temos propriamente, aqui, o caso de uma obra-prima do Diretor, há de se reconhecer, contudo, que o filme merece um lugar cativo no coração de quem ama o Cinema. Afinal de contas, como poucas obras recentemente o fizeram, Os Fabelmans expõe a infinitude do poder de uma câmera em transformar a vida em espetáculo, fato este percebido por Spielberg desde cedo. Sorte a nossa ele ter escolhido fazer daquela brincadeira de criança a sua profissão de fé secular.
INFORMAÇÕES:
Título Original | Ano: The Fabelmans | 2022
Gênero: Drama
País: Estados Unidos
Idioma: Inglês
Duração: 2:31 h
Classificação: 14 anos
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Steven Spielberg e Tony Kushner
Elenco: Michelle Williams (Mitzi Fabelman), Gabriel LaBelle (Sammy Fabelman), Paul Dano (Burt Fabelman), Seth Rogen (Bennie Loewy) e outros
Data de Lançamento: 09 de fevereiro de 2023 (Brasil)
Avaliações: IMDB| Rotten Tomatoes
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