Por mais natural que seja, a morte sempre gera desconforto. A perda de um ente querido gera sensações diversas, seja o sentimento de ausência, de culpa ou, ainda, a sensação de alivio pelo descanso (em situações mais dolorosas) e até mesmo…
Tendo a morte como premissa, e como esta afeta a vida de uma família, “Hereditário” surge como um dos longas mais badalados do ano, apresentando um bom filme em um gênero que se apresenta desgastado pelos clichês que vão do uso excessivo de jumpscares, sustos fáceis, trilha sonora climática e até enquadramentos semelhantes.
Como efeito do aumento da presença de um público mais jovem, as produções do gênero terror tem sido direcionadas para essa faixa etária, por conta disso tem acontecido maior investimento em películas de fácil apelo e grau de certeza de sucesso. Diante desse quadro, o cinema de horror/terror americano está dividido em três frentes lideradas por três produtoras.
Na primeira frente, a Warner com filmes de grande orçamento e que atingem uma grande parcela do público, atendo-se aos filmes mais comerciais. “Invocação do Mal” e “It, A Coisa”, mostram a força dessa produtora.
A segunda tem a Blumhouse Productions, uma pequena produtora, com filmes de baixo orçamento, mas que também consegue bom alcance. Produzem filmes não tão comerciais quanto a Warner, e que transitam entre o independente e o comercial. A produtora começou suas atividades com a franquia “Atividade Paranormal”, conseguindo sucessos como “Sobrenatural”, “Fragmentado” dentre outros.
E, por fim, a terceira, tendo à frente a produtora A24, que trabalha com produções independentes e de baixo orçamento, investindo no cinema menos comercial e com produções carregadas de uma atmosfera pesada e sufocante. São dela filmes como “A Bruxa” e “Ao Cair da Noite”. Apresentam histórias menos comerciais, explorando situações sufocantes e claustrofóbicas, não se prendendo aos sustos fáceis. É nesse conceito que “Hereditário” se encaixa.
O filme foi roteirizado e dirigido pelo estreante em longas Ari Aster, um jovem diretor nova-iorquino e ex-aluno do American Film Institute, que em 2011 surpreendeu público e crítica com o curta “The Strange Thing About the Johnsons”, perturbador e difícil esquecimento. Apresentando várias características marcantes presentes também em “Hereditário”.
No longa, após a morte da matriarca da família Graham por causas naturais, sua filha, Annie, começa a desvendar alguns segredos de sua mãe. Mesmo após sua partida, ela permanece como uma sombra sobre a família, especialmente sobre a solitária neta adolescente, Charlie, por quem a avó sempre manteve uma fascinação incomum.
Esqueça os sustos fáceis, e cenas de tensão seguidas por outra que vem para depois aliviar o expectador. O clima de terror é criado de forma gradual. A sensação de pavor ou de desconforto pode vir do foco nas sombras ou em qualquer espaço mínimo do ambiente. O envolvimento com o clima de tensão experimentado por cada personagem é construído cena a cena, plano a plano, graças a opções estéticas utilizadas pelo diretor. Várias cenas dão essa sensação, os dioramas, por exemplo, são usados para marcar vários momentos da narrativa. Visível nas cenas iniciais, como no momento em que o caixão vai descendo e a câmera acompanha este objeto tão peculiar.
A representação dos dioramas a todo momento (fato que podia também ser melhor explorado) dialogando com a família Graham é utilizada de forma muito competente, dando a impressão que tem alguém, ou algo ou até mesmo uma força controlando externamente.
A trilha sonora, a cargo de Colin Stetson, também é um espetáculo a parte, explorando o uso de um violino, cujas cordas desafinadas, tocando uma melodia de arrepiar, que vai preenchendo todo o ambiente até se tornar ameaçadora, busca criar um clima de pavor sem mostrar algo de forma explícita. Há de se exaltar também como os sons são utilizados na narrativa. O uso do som de um pisca alerta pode ser usado para fazer sentir medo, explorando mais o lado da sugestão.
E é justamente nesse quesito que “Hereditário” se sustenta: o poder da sugestão. Ela causa muito mais impacto do que a apresentação, ao brincar com a imaginação do expectador, que nunca sabe realmente o que está acontecendo. Sendo levado a se perguntar a todo momento se aquele pesadelo é real ou imaginário.
Com a fuga dos clichês dos filmes de terror, pode ser considerado um drama torturante, já que o histórico da família da protagonista é de problemas psicológicos em diversas gerações, componente bastante presente. Há ambições estéticas grandiosas. Por mais que seja um filme de gênero, a produção passeia por diferentes vertentes do cinema: terror/horror, suspense, e cinema de arte.
As atuações em filmes de terror geralmente são marcantes, sempre cheia de interpretações que muitas vezes ficam na linha tênue entre a boa atuação e o caricato, basta observar como personagens reagem a diferentes situações.
Mas aqui, Toni Collete, sempre muito competente, apresenta uma atuação das melhores do ano, digna de figurar nas premiações. Sem comedimentos, se entrega em mudanças visuais e estéticas corporais de um realismo poucas vezes visto no cinema. A atriz transita do controle ao descontrole, mudando bruscamente a fisionomia, como na cena do jantar.
+++ Leia a crítica de ‘Babadook’, de Jennifer Kent
Os filhos Peter (Alex Wolf) também tem a oportunidade de apresentar traços de descontrole, e também é assustador como se percebe a degradação física e mental do personagem, e Charlie (Milly Shapiro), por mais estranha que o roteiro faz transparecer, nunca demonstra uma aparência assustadora, apenas uma criança que não parece fazer parte daquele mundo. O marido Steve, vivido por Gabriel Byrne, que se apresenta como o pilar de sustentação da família, onde aparece quase sempre inerte, transparece um homem que precisou passar toda sua vida sendo o pilar emocional. O momento que este sente todas as forças se esvaindo, e se entregando a um choro emocional, é também muito cortante. O restante do elenco está muito bem, mas pouco aparece, sendo o filme centrado nessa família disfuncional.
O filme só não atinge a cotação máxima por um leve problema.
Durante toda a construção, foi criada a sensação de que tudo que acontece poderia simplesmente ser obra de mentes perturbadas, seja pelo lado materno da família Graham, ou por forças malignas. No entanto, no terceiro ato, parte para o lado mais gore, do horror físico e visceral. Se continuasse pelo lado da sugestão com diferentes tipos de interpretação, como sugerido durante toda a projeção, este seria um novo clássico, como “O Exorcista” e “O Bebê de Rosemary” (que tem semelhanças no seu final) se utiliza da solução sobrenatural para uma conclusão. Recurso presente também no filme “A Bruxa” que não perde parte do impacto da obra, mas a enfraquece.SPOILERS
FICHA TÉCNICA:
Gênero: Drama, Horror e Mistério
Duração: 2h07min
Direção: Ari Aster
Roteiro: Ari Aster
Produção: Lars Knudsen, Kevin Scott Frakes, Buddy Patrick
Elenco: Milly Shapiro, Alex Wolff, Toni Collette, Ann Dowd, Gabriel Byrne, Mallory Bechtel
Lançamento: 21 junho 2018 (EUA)
Censura: 16 anos
IMDB: Hereditário
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