‘Ella and Louis’ é a união de dois gênios em álbum “didático”


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Resenhar discos é, quase sempre, um atrevimento, quando opinamos sobre o trabalho de criadores, sob uma ótica pessoal, e muitas vezes (senão todas) sem compreensão plena dos sentimentos dos criadores das obras.

Há álbuns cuja temática ou sonoridade fazem parte do cotidiano do resenhista, e o processo de resenhar se torna mais fácil, embora sempre impreciso, é preciso ser dito, pois, conforme explicado, não temos conhecimento de causa dos sentimentos dos autores.

Tenho dificuldades em resenhar alguns estilos. Rap, Hip Hop, Jazz, Be Bop, Swing e até MPB são dificuldades quase que intransponíveis, muito provocadas pela distância auditiva desses estilos, mas, hey, acabei de afirmar que resenhar discos é um atrevimento.

Nasci em 1978, acompanhei intensamente o Rock do final dos anos 80 e dos anos 90. Quando me perguntam “o que gosto de ouvir”, logo respondo: “Rock”. Em 1978, fazia sete anos que Louis Armstrong havia falecido. Meu pai tinha um disco dele em casa, What A Wonderful World, de 1969, e talvez essa (e um disco do Herb Alpert & Tijuana Brass) tenha sido a única experiência com o Jazz. Na adolescência, conheci superficialmente músicos que orbitam o universo do Jazz, mas eu preciso admitir que eu simplesmente não sei nada de Jazz. Sou daqueles que, ao ouvir falar em Oscar Peterson, Dave Brubeck, Sonny Rollins, Miles Davis, Chet Baker ou qualquer medalhão, me sinto como uma criança que não estudou na hora do exame de álgebra.

Também acho pedante o comportamento de quem de fato entende deste riscado, sempre com ar superior e por vezes arrogante (não são todos, mas vocês sabem do que estou falando!). A música, independente do estilo, dialoga com o íntimo de quem ouve. Na minha total ignorância, consigo apenas pensar que o Jazz me desperta alguns sentimentos: podem ser alegres, como um dia ensolarado, ou tristes como um dia frio e chuvoso, ou ainda reflexivas, como uma tarde nublada.

Se o Punk Rock é “desordenado”, o Jazz também tem desordem e algum primitivismo. Além de muito minimalismo. E quiçá pode ser tão agressivo quanto o mais pesado dos ‘Heavy Metal’.

Dito tudo isso, fico mais à vontade para falar de Ella And Louis, álbum de 1969.

Em 1969, o Jazz grandioso dos anos 10 e 20, aquele das Big Bands, já tinha se tornado algo mais intimista, com um músico ditando os caminhos por onde a banda de apoio o acompanharia, geralmente em improviso. Essa métrica favoreceu Louis Armstrong, que também era trompetista, clarinetista e saxofonista, e o tornou num dos grandes nomes cultuados do estilo. No entanto, boa parte de sua carreira flerta fortemente com a Dixieland, uma vertente do Jazz que fica entre o grandiosismo das Big Bands e o minimalismo instrumental (pelo menos é assim que consigo compreender o estilo). Ella Fitzgerald, no entanto, usava a voz como condutora das bandas que a apoiavam, e talvez seja a voz feminina mais icônica do universo jazzístico.

A junção de Ella e Louis não poderia ser mais perfeita. Poucos discos confortam tanto quanto esse. Primeiro, há a combinação de vozes de Ella e Louis: Fitzgerald tem a voz de um anjo, clara, expansiva e expressiva. Armstrong, com sua voz rouca, ríspida e grave – barítono – faz o contraste abrupto. Mas as genialidades musicais e vocais se casam, como naquelas piegas frases sobre casamentos “os opostos se atraem”. Desafiam a química, misturando água e óleo.

A capa também nos conforta. Ella e Louis, sentados em cadeiras modestas, vestidos de forma simples e confortável. Chamam atenção as meias de Louis sem elástico, enroladas nas canelas. É uma foto sublime, que nos aproxima dos gênios, como se os conhecêssemos em algum quintal de avó ou tia.

E como descrever uma música da qual entendo tão pouco? Ora, com atrevimento.

A música boa desperta sensações e sentimentos, prazeres e pensamentos, endorfina. Quando começa “Can’t We Be Friends?”, a sensação que temos é de conforto. É como acomodar-se na poltrona mais confortável, com a bebida mais prazerosa que você possa se presentear. Ella começa cantando sublimemente. Sua pronúncia é tão perfeita, que mesmo os não iniciados no idioma conseguem acompanhá-la. Armstrong aparece no segundo verso, contrastando com sua voz singular. Ainda que seu tom seja tão diferente, percebe-se a afinação e o cuidado ao cantar.

Endorfina.

Q

uando cantam juntos no último verso, e Armstrong sobe alguns tons com um “Oh Yeeeeessss”, é impossível não sorrir.”Can’t We Be Friends?”, além de abrir, dita o tom do álbum: há destaque total para os vocais, enquanto os músicos, dos quais falo logo mais, brincam ao fundo. Por vezes, os trompetes de Armstrong ganham destaque.

“Isn’t This A Lovely Day?”, a segunda música, tem Ella cantando com tanta paixão e entrega, e às vezes com o trompete de Armstrong em contraponto.

“Moonlight in Vermont” reduz o andamento, para entregar uma canção intimista, com um dos solos de trompete mais bonitos do álbum. E o andamento mais animado é retomado com “They Can’t Take That Away From Me”.

Minha favorita do álbum é o clássico standard “Cheek To Cheek”, que supera, com folga, a versão de Frank Sinatra. Merecem destaque, porém, “A Foggy Day”, “Stars Fell On Alabama”, e o encerramento, “April in Paris”. O álbum, quando se encerra, deixa o ouvinte com sensação de saciedade, mas também com sede de ouvir tudo novamente.

Ella And Louis não foi a primeira contribuição dos dois. Ambos já haviam gravado juntos para a gravadora Decca, no final dos anos 40. O álbum, gravado em 16/08/1956 nos estúdios Capitol, traz Ella, com 39 anos de idade; e Armstrong, com 55 anos, na época os maiores nomes do estilo.

Norman Granz, dono do selo Verve, chamou os principais nomes do estilo também para a banda que os acompanhou: o pianista Oscar Peterson e seu grupo: Herb Ellis (guitarras), Ray Brown – ex-marido de Ella (baixo) e Buddy Rich (baterias). Todos esses nomes são notáveis pelos seus feitos no Jazz, uma busca simples nos leva a outros universos.

Norman Granz também selecionou as músicas aqui gravadas, todas standards americanos, compostos entre os anos 20 e 40. O álbum tem sonoridade impressionante, uma atenciosa audição nos dá a sensação dos cantores ao seu lado.

A dupla gravou mais dois álbuns: Ella and Louis Again (1957, também sublime), e Porgy And Bess (1959).

+++ Leia sobre o álbum ‘Phrenology’, do The Roots

Sem saber absolutamente nada de Jazz, tentando fugir da petulância que ronda os apreciadores do estilo e tentando traduzir o que esse álbum me provoca, consigo afirmar que esse é um álbum didático. É como se fosse uma cartilha amistosa a um estilo, tão complexo e de amplo espectro, e altamente indicado para os não iniciados, como eu.

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FICHA TÉCNICA E MAIS INFORMAÇÕES:

 

ANO: 1956
GRAVADORA: Verve
FAIXAS: 11
DURAÇÃO: 54:06 min
PRODUTOR: Norman Granz
DESTAQUES: “Cheek to Cheek”, “Can’t We be Friends?”, “April In Paris”, “A Foggy Day”
PARA: Entusiastas e iniciantes do Jazz

 

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