‘Here To Be Heard’ e a trajetória fulgurante das Slits


The-Slits-Band

Em 1976, nos primórdios da cena Punk londrina, um quarteto formado apenas por garotas entrou com os dois pés no movimento Punk, incendiou os palcos, provocou alvoroço na mídia e despertou garotas ao redor do mundo para a possibilidade de: 1 – estarem numa banda de Rock; 2 – se comportarem da forma que desejassem e não uma projeção das expectativas e imposições da sociedade. É uma tentativa de resumir a força das Slits, a primeira banda punk feminina, que pode ser melhor compreendida no documentário Here To Be Heard: The Story Of The Slits (2017), do diretor e roteirista William E. Badgley.

Volte a esse mesmo 1976, especificamente ao show de Patti Smith na capital inglesa. O show foi emblemático, primeira vez de Patti na Inglaterra. Mais ainda porque foi durante esse show que a baterista Paloma Romero (AKA Palmolive) teve sua atenção para o show colocada em segundo plano pela jovem Ariane Forster (AKA Ari Up, então com 14 anos), que brigava de forma chamativa com sua mãe. É irônico e também inusitado que tenha sido graças ao seu “show particular” que Ari tenha sido convidada para ser vocalista do grupo, naquele momento completado pela guitarrista Kate Korus.

Estava formada a The Slits, uma das bandas mais singulares da história da música. Começavam sua jornada de forma chamativa, com um nome ambíguo (slits é algo como fenda) e que seria motivo de situações absurdas, quase surreais. Como ter a calça cortada com canivete por um homem da plateia (que teria gritado: Tem uma fenda para você!), subornar o motorista do ônibus da própria turnê para poderem entrar no veículo (durante a tour White Riot com o The Clash, Subway Sect e Buzzcocks) ou serem proibidas de circularem no hotel em que estão hospedadas.

Contra tudo e contra todos, as Slits foram adiante, se tornaram uma espécie de gang, uma irmandade. Seguiram em frente, fazendo shows, aperfeiçoando sua técnica nos instrumentos. Surgida na esteira do lema punk “Faça você mesmo”, foram aprendendo a tocar e abordar seus instrumentos nos ensaios e em cima dos palcos. Evoluíram de canções com pegada mais crua para uma música que incorporava o groove Reggae (uma dos gêneros musicais fortes na época e com conexões fortes com o Punk) e, posteriormente, para World Music, em seu segundo álbum, Return of the Giant Slits (1981).

Sem querer se prender a rótulos, elas insistiam em não permitir serem amarradas a termos ou (pré)conceitos: “We’re just the Slits; we are what we are” (Somos só as Slits; somos o que somos). Tanto que após a saída de Palmolive, permitiram bateristas homens no grupo.

Cut, o disco de estreia, foi lançado tardiamente pela Island Records, em 1979, e teve produção de Dennis Bovell e participação de Budgie (Siouxsie and the Banshees) na bateria. O álbum mostra o grupo com uma sonoridade mais para ambientações, texturas de guitarras e grooves de Reggae e Dub, alcançando aproximação com o Pós-Punk, diferente dos primeiros anos. Muitos nem acreditaram que foi a banda mesmo que tocou no disco. A capa, com as três integrantes da banda seminuas e sujas de lama, causou furor na imprensa conservadora. Tardiamente também o álbum veio a ter seu valor reconhecido por público e crítica, passando a figurar em listas de melhores álbuns tanto do Punk quanto do Pós-Punk e até ser considerado clássico.

É sobre o início e o fim, as mudanças, a amizade e as brigas, a trajetória fulminante e o hiato repentino, o lançamento do primeiro álbum e a dispensa inesperada pela gravadora. É sobre as curiosidades, as dificuldades, o preconceito e a luta pela sua arte e seu espaço. É sobre imagens e gravações inéditas, entrevistas e declarações, incluindo de convidados (Budgie, Paul Cook, Neneh Cherry, Don Lets, Dennis Bovell, Thurston Moore, Donita Sparks) que trata o filme de Badgley ao longo de seus 86 minutos.

De início vertiginoso e final melancólico, mas luminoso, Here To Be Heard: The Story Of The Slits é um registro monumental e extremamente rico sobre uma banda que, apesar da força representativa de sua obra e seu posicionamento, raramente é citada ao se falar sobre o movimento Punk. Por que? Essa é uma das perguntas que deveriam ser respondidas pelo filme, mas deixada em branco.

A produção opta por apresentar os “fatos” ao espectador para que ele tire suas próprias conclusões. E os fatos surgem na tela através, principalmente das palavras da baixista Tessa Pollitt – uma das produtoras do documentário -, e também de suas ex-colegas de banda: Palmolive, Viv Albertine, e das participações mínimas de Kate Korus, Suzy Gutsy. Tessa guarda, de forma cuidadosa, um livro de recortes com tudo que saiu na imprensa sobre a banda. Embora não seja uma das fundadoras das Slits, fez parte da formação clássica (junto com Ari Up, Palmolive e Viv Albertine) e, junto com Ari, reformou a banda em 2005 e lançou um terceiro e esquecido álbum com novas integrantes em 2009.

Além de um registro essencial sobre a trajetória das Slits, o filme é também uma homenagem póstuma à vocalista Ari Up, falecida em 2010, vitima de câncer. É sobre a sua trajetória, pós Slits, contada de forma breve, e seu retorno e reforma da banda que se dedica a terceira parte do filme. Era uma realização com a qual sonhava vocalista, que até chegou a fazer gravações para um futuro filme com a manager do grupo durante a turnê americana.

Rico enquanto registro único da banda, Here To Be Heard: The Story Of The Slits mostra as várias conexões das Slits com outras bandas da cena Punk inglesa, mas deixa muitas lacunas a serem preenchidas e muitos “cantos” a serem explorados para melhor compreensão sobre a história da banda e suas ligações e ramificações – incluindo a banda The Raincoats, a relação de Nora (mãe de Ari) com John Lydon são alguns exemplos.

+++ Leia sobre o documentário ‘White Riot’, de Rubika Shah

Como outros documentários, Here To Be Heard começa com um ritmo acelerado e dinâmico para finalizar de forma lenta e melancólica. É uma sensação semelhante a do filme de Todd Haynes sobre o The Velvet Undergound. Isso não diminui a força do material entregue, que é essencial para quem deseja se aprofundar na história do Punk.

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FICHA TÉCNICA E MAIS INFORMAÇÕES:

TÍTULO ORIGINAL: Here To Be Heard: The Story Of The Slits
ANO: 2017
GÊNERO: Documentário, Biografia
PAÍS: Reino Unido
IDIOMA: Inglês
DURAÇÃO: 1:26 h
CLASSIFICAÇÃO: —
DIREÇÃO e ROTEIRO: William E. Badgley
ELENCO: Tessa Pollitt, Viv Albertine, Paloma Romero/Palmolive, Ari Up/Ariane Forster, Kate Korus, Suzy Gutsy, Budgie, Don Letts, Danny Bovell, Donita Sparks, Neneh Cherry, Thurston Moore e outros
AVALIAÇÕES: IMDB

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