ENTREVISTA | Harry


Harry ainda com Hansen

Conhecer a história do Harry, um das bandas precursoras da cena eletrônica nacional, é conhecer uma parte fundamental da história do rock brasileiro feito na década de 80 em sua faceta mais diferenciada, ímpar.

Corria o ano de 1985 quando, após o envolvimento com diversos projetos musicais que não foram adiante, Johnny Hansen (guitarra e voz) e César Di Giacomo (bateria) juntam-se a Richard Johnsson (baixo) e criaram o Harry (And the Addicts), projeto musical de matizes eletrônicas mas que bebia também em influências tanto do punk quanto do pós-punk, senão em termos de sonoridade, mas em termos da atitude, do “faça você mesmo”. Dois anos depois e lançam pela Wop Bop seu primeiro registro, o EP “Caos”, produzido por Roberto Verta. “Caos” traz quatro faixas (incluindo “Caos” em uma versão demo) e conta com a participação de Denise Tesluki nos vocais.

Um ano depois a banda gravaria “Fairy Tales”, seu primeiro e revolucionário álbum, onde fica evidente um trabalho mais caprichado, inclusive por terem mais tempo em estúdio. Sem Denise na formação, os vocais ficam a cargo de Hansen, com todas as letras em inglês, algo inusitado no cenário do rock nacional da época. “Fairy Tales” foi também produzido por próprio Roberto Verta, que passaria a integrar a banda. O disco expande a sonoridade do primeiro EP, apresentando um excelente trabalho com sintetizadores, samplers e synths e alguns momentos com mais guitarras, uma sonoridade diferente de tudo que estava sendo produzido no país na época e em par com a cena eletrônica estrangeira. O álbum traz clássicos da banda santista inesquecíveis para os fãs, dentre eles “Genebra”, “Lycantropia” e “Sky Will Be Grey” e rende elogios positivos de revistas especializadas, como a Bizz.

Seguem-se vários shows, ao tempo que a banda vai conseguindo um público fiel, tornando-se cult. Uma das curiosidades é que a banda chegou a tocar “Genebra” no programa “Boca Livre”, da TV Cultura, apresentado por Kid Vinil, em 1988.

Em “Vessels Town”, o álbum de 1990 lançado pelo selo Stiletto, a banda utiliza cada vez mais bateria eletrônica, o que provoca a saída do baterista César Di Giacomo. Reduzidos praticamente a apenas Hansen e Verta, que ficam responsáveis pela gravação do disco, a banda dá mais um passo adiante na sua mistura de eletrônico com guitarras. Apesar de ser um álbum mais direto que o antecessor, “Vessel’s” é bem recebido, inclusive no exterior. Destacam-se as faixas “Saviour”, “Stephanie Jensten” e a faixa título.

Com o fim da Stiletto e os integrantes envolvidos em projetos paralelos, a banda entra num hiato em termos de novidades musicais. Nesse meio tempo, a coletânea “Chemical Archives” é lançada pelo selo Cri du Chat Disques, contendo dezessete faixas, com quatro inéditas. Esse é o primeiro lançamento da banda em formato CD.

Em 96 a banda segue para um sítio em Serra Negra para as gravações do que pretendiam ser o terceiro álbum do Harry. Devido a compromissos pessoais e mudanças de residência de todos os membros, a continuidade das gravações tornaram-se complicadas, o álbum abortado e a banda encerra as atividades.

As canções mais acabadas dessas sessões de gravações entrariam como bônus no box “Taxidermy – Boxing Harry”, lançado em 2005. “Taxidermy” reúne em CD, além das gravações citadas, todos os lançamentos da banda, antes disponíveis apenas em vinil ou K7, remasterizados. A banda é então reformada para promover o box, com shows em São Paulo junto com a banda belga The Neon Judgement.

Segue-se um outro hiato, até a banda se reunir novamente. Em 2014 é lançado o álbum “Electric Fairy Tales”, que contém sete faixas do “Fairy Tales”, regravadas em arranjos elétricos, e mais nove faixas inéditas.

Em 2017, a banda encontrava-se em intenso processo de gravação do que seria seu mais novo álbum, com o título provisório “The Dark Passenger”, quando aconteceu em abril a morte de seu mentor Johnny Hansen de um enfarto fulminante.

Os outros membros do Harry [Cesar “Chuck” Di Giacomo (bateria, vocal), Richard K. Johnsson (teclado), Lee Luthier (baixo) e Marcelo Marreco (guitarra)] seguem adiante com a banda, inclusive fazendo show, ao tempo que preparam o lançamento do novo álbum – que provavelmente será lançado ainda esse ano, mais ainda envolto em certa aura de mistério -, além de um documentário, provisoriamente chamado “O Caos no Céu Cinza”. Roberto Verta e Richard Johnsson, membros da formação inicial da banda, gentilmente responderam algumas perguntas para o Urge! através de e-mail, e vocês acompanham abaixo.

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De repente vocês saíram de Sex Pistols e chegaram a Skinny Puppy e New Order, como se deu a guinada musical de vocês, do punk para a música de matizes eletrônicas?
Verta: Após o “London Calling” do Clash, ficou claro que o futuro do punk seria continuar o “do it yourself” e que tudo podia, tudo era possível, e entre essas coisas possíveis havia Tubeway Army, Visage, Skinny Puppy, Suicide, Joy Division, sendo que, todos vinham da mesma matriz, mas por caminhos diferentes. Bem antes de entrar a banda já trocava figurinhas com o Hansen esse tipo de bandas, então tudo foi natural. Era apenas mais uma variação dos 3 acordes do punk…agora seriam 4 e com sintetizadores também!

Johnsson: Sempre que me perguntam “qual o estilo musical da banda”, eu respondo “punk”, pela atitude e não necessariamente pelo som que descreve o punk.

Na época do lançamento dos álbuns, o Harry teve boa recepção da crítica, mas pouco alcance em termos de público, ao que poderia ser atribuído esse descompasso? E você acha que o Harry é mais conhecido e reconhecido hoje do que naquela época?
Verta: Sucesso pode ser definido de várias formas e acredito que tenhamos tido um pouco de algumas dessas formas, já que 30 anos após o lançamento desses discos, ainda nos falam sobre eles. Se somos mais reconhecidos hoje do que antes, não saberia dizer, mas creio que o tempo faz as coisas se relativizarem e o que é importante hoje não era antigamente e vice-versa. Como Bowie dizia, o ideal é estar sempre a dois passos na frente, porque se forem dez passos a frente, ninguém consegue te enxergar. Talvez tenha sido esse nosso caso, mas no fundo não sabemos.

Formação clássica: Verta, Hansen, César e Johnsson

Johnsson: Não tenho certeza como isso é ao redor do mundo, mas no Brasil, “crítica” e “público” habitam estratos musicais diferentes. Mas nunca pensamos em necessariamente atender os gostos de um ou outro, apenas fazíamos aquilo que estava dentro das nossas concepções e torcendo para que tivéssemos eco em algum deles. Tem como ser mais punk?

Sobre o “Vessels Town”, que é um disco onde há uma presença maior de guitarras do que o “Fairy Tales”, o que poderiam falar?
Verta: Hansen costumava citar o Bill Nelson do Be Bop Deluxe, que dizia que disco é uma coisa e show outra. Na época (97, 98), nossos shows eram bem orgânicos, com muita guitarra, mas quando fomos gravar “Fairy Tales”, havia a vontade em experimentar com sequenciadores, samplers e synths, então demos às canções o que achávamos que cada uma necessitava. Grande parte dos sons são sintetizados, mas as guitarras estão bem presentes em “The Beast Inside”, “Joseph in the Mirror”, “Silent Telephone”, “Death”, “The Last Birthday” e fazem a liga com nosso som ao vivo, na época. Algumas das programações de bateria eletrônica foram feitas pelo Cesar de forma que de alguma maneira remetessem ao clima das canções ao vivo. Conceitualmente, “Vessels’ Town” segue essa mesma linha, porém estávamos mais experientes e talvez por não termos um baterista na época, soa aos ouvidos da maioria como mais eletrônico. Na verdade nunca havíamos comparado se um tem mais guitarras que o outro, mas em todo o caso não foi intencional. Assim, como em “Fairy Tales”, cada canção teve o tratamento que as deixasse soando melhor.

Olhando do ponto de vista de hoje, você considera que a música que faziam estava à frente de seu tempo, em termos de Brasil? E na época, como vocês se enxergavam no cenário alternativo nacional?
Verta: Já ouvimos algumas pessoas dizerem isso (que estávamos a frente do nosso tempo), mas quando se está numa banda onde o objetivo maior não é o dinheiro, você faz o que tem que fazer, na hora que tem que fazer, sem dar muita bola para o mercado. Se compararmos com o que rolava na época, talvez sim, alguns elementos como o uso intencional da língua inglesa, bons valores de produção (boa engenharia sonora, boa apresentação gráfica, etc), talvez tenha sido uma surpresa para alguns que uns caras de Santos tenham esse tipo de preocupação estética e sonora. No fundo não penso muito nisso, mas fico feliz em saber que alguém possa achar que estávamos um pouco à frente.

Quanto a nos enxergar dentro desse cenário, naquele tempo havia o pop carioca, a chamada vanguarda paulistana (Arrigo, etc.), o rock do sul que era bem orgânico, e nós não estávamos inseridos em nenhum desses contextos. Nosso contexto era Santos, Cubatão, poluição, Aids, praias, a monotonia de um balneário, mas com as portas do porto abertas para o mundo.

As vezes quando olhava para o mar, ficava pensando que se tivesse fôlego suficiente poderia ir nadando em linha reta até a África e isso é muito libertário. Então, apesar de defendermos a música alternativa e independente, nunca tivemos a intenção de ser algo além de nós mesmos.

Johnsson: Sinceramente, não sei ao certo. Apenas lembro-me de ter várias vezes passado por situações onde num ano fazíamos algo “ousado” e “esquisito” e pouco tempo depois apareciam outros fazendo o mesmo. Mas, de novo, o Brasil é um país que tem uma cultura muito kitsch e estar à frente do tempo é uma tarefa extremamente fácil.

Alguma banda nacional ou internacional que vocês percebem influências do Harry de alguma forma?
Verta: Hansen comentou uma vez que o Chorão disse a ele que ouvia “Fairy Tales” enquanto fazia skate, mas no fundo, se isso o influenciou, eu não saberia responder. O que posso afirmar com certeza é que a lendária Gibson SG vermelha que o Hansen usava nos anos 80, já passou pelas mãos do Chorão e até hoje “vive” ainda com os ex-CBJrs.

Johnsson: Boa pergunta. Imagino que o pessoal que fez um tributo ao Harry tenha algo nesse sentido. Exclusivamente na questão sonora não sei, mas certamente influenciamos no “faça você mesmo”.

Em 2010 foi lançado o tributo “The Sky Is Grey – A Tribute to Harry”, pelo selo Phantasma 13, como aconteceu o projeto? Vocês tiveram algum envolvimento?
Verta: Não sei ao certo como aconteceu e, eu particularmente não estava envolvido, mas acho legal ver outras leituras das nossas canções.

Johnsson: Fico lisonjeado quando bandas tocam Harry. Mas só fiquei sabendo do lance bem depois que foi lançado. Adoraria tocar com algumas delas e trocar impressões.

Em que ponto estava o trabalho de vocês quando aconteceu a morte de Hansen e de que forma isso mexeu com a cabeça de vocês?
Verta: Apesar de que naquele momento eu não estava mais na banda, éramos parceiros de longa data, falávamos com alguma frequência, e é claro que isso mexe com o emocional quando você pensa que não mais vai haver aquele cara que era uma referencia. Recebi a notícia através do Cesar que foi o único que o viu ainda no local em que ele morreu. Nunca vou esquecer a descrição da cena pelo Cesar, e ouvir aquilo foi um desses momentos surreais. O Hansen era um cara muito forte, sabia que corria alguns riscos, mas você acha que o cara forte vai viver pra sempre e não é bem assim.

Formação recente ainda com Hansen

Johnsson: Tínhamos finalizado o material inédito, composto de algumas músicas recentes e outras tiradas do baú. Trocávamos e-mails e mensagens pelo Whatsapp sobre outras para gravar. O Hansen estava no melhor momento como guitar-man, sendo bem técnico e inovador no uso da guitarra. Foi uma pena o FDP ter morrido, um puta baque. Sem contar que ele era o nosso backup de recordações (muitas músicas minhas que eu tinha guardado por anos, dei para ele ter ideias de arranjos elétricos).

Vocês têm feito alguns shows e tocado músicas novas, inclusive com uma pegada mais rock do que eletrônica, como tem sido a recepção?

Johnsson: Desde que retomamos o formato elétrico, tem sido bem positivo. Particularmente, sou uma pessoa bem plural: gosto de vários estilos e formas de compor e tocar. Soou como a retomada das raízes adolescentes, com a maturidade musical atual. Fizemos recentemente um show no Sesc de Santos e, além do formato elétrico, também o primeiro sem o Hansen. Tivemos uma ótima receptividade por pessoas que nos conheciam e outras que ouviram pela primeira vez. O feedback foi fantástico, especialmente por um sentimento interno da banda de que podemos seguir tocando nessa formação com qualidade.

Vocês continuam com o nome Harry ou houve alguma mudança com a morte de Hansen? E como se sentem no palco, cantando aquelas canções sem a presença dele?
Johnsson: O nome continua. Não tem sentido mudar, afinal, a proposta sonora está mantida. É esquisito tocar sem ele, embora tenhamos certeza que o tempo irá se encarregar em lamber as feridas. No final, o que nos move é a vontade de compor, tocar e encontrar eco no público que nos prestigia.

Tem alguma canção que não pode faltar nos shows ou alguma cuja execução ao vivo é mais complicada?
Johnsson: “Lycanthropia”, “Genebra”, “Soldiers”, “Sky Will Be Grey” nos perseguem, no bom sentido. Outras mais novas tem tido boa aceitação e ficando carimbadas. Algumas que eram 100% eletrônicas estão com releitura elétrica e ficaram boas. Com relação de executar ao vivo, isso sempre foi algo que logo desencanamos. Sempre fomos bem melhores em estúdio que ao vivo, talvez pela infinidade de recursos e arranjos na hora de gravar. Algumas ficam com cara de estúdio e outras com arranjo próprio para o formato live. E as que não tem como reproduzir ai vivo, não tocamos. Não gostamos de apresentar nada que não nos satisfaça em primeiro lugar. “Morbid” seria um bom exemplo.

O que poderia contar sobre os rumores de um álbum de material inédito do Harry esse ano? Inclusive sobre o título “The Dark Passenger”, alguma relação com o “passageiro sombrio” do seriado Dexter?

Johnsson: Estamos selecionando o material para um CD que deve sair ainda este ano. Muitas coisas já estavam em andamento quando o Hansen faleceu. Quanto ao nome, ainda é mistério e a origem do possível nome, como sempre, totalmente obscura. Mas a música “The Dark Passenger” fará parte.

Por que é tão difícil encontrar o box “Taxidermy” para comprar?
Verta: Porque está fora de catálogo, já que a primeira e única prensagem foi toda vendida (parte dela exportada a outros países). Há planos em lançarmos como uma caixa em vinil, talvez ainda em 2018.

Fique à vontade para deixar uma mensagem para os leitores do Urge! e para seus fãs.
Verta: A velocidade só é importante quando você sabe para onde está indo! Paz a todos!

Johnsson: Antes do “Electric Fairy Tales”, o Hansen entrou em contato comigo por e-mail, por volta de 2010, mostrando preocupação em termos muitas músicas que não tinham saído do papel. Disse que achava que tínhamos poucos anos pela frente e que deveríamos registrar para posteridade o máximo de gravações que o dinheiro e o tempo permitissem. Depois vim a saber que a preocupação dele era em relação à minha saúde. Destino irônico.

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:: Abaixo, trecho do show “O Caos no Céu Cinza”:

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