O Cinema Estadunidense tem um portfólio poderoso quando se refere a filmes sobre petróleo e sobre homens brancos em território indígena. Esse catálogo reflete a história do país, considera a formação dos Estados Unidos enquanto nação e o costume de um povo nacionalista, consumidor e com visão predatória, com a ótica de que toda terra deve ser explorada, tenha ela um proprietário ou não. Sendo assim, pensar na história do Cinema Estadunidense sem incluir essas narrativas é simplesmente impossível. O Cinema do país nasce com esses contos, se desenvolve a partir deles, revoluciona técnicas e muda a visão sobre a própria sétima arte tendo estes elementos, estas histórias, como uma presença marcante.
Estas histórias formam um imaginário que está associado ao Cinema ‘‘tipicamente norte-americano’’. Por ser algo tão intrínseco, de quando em quando, essas narrativas também nos apresentam grandes diretores, seja John Ford através de seus faroestes ou Paul Thomas Anderson, com seus filmes que orbitam em torno do petróleo.
Se pensarmos no Cinema ‘‘tipicamente norte-americano’’ de modo mais amplo, abrangendo a máfia, a Guerra do Vietnã ou capitalismo destrutivo, surge o nome de Martin Scorsese. Ao longo de sua carreira, Scorsese se destacou por desafiar o American Way of Life, ao retratar os Estados Unidos e a sua história sob uma perspectiva questionadora, sem hesitar em expor as falhas e os problemas sociais do país. Assim, ele se tornou um notável contribuidor e uma referência central na Nova Hollywood, movimento cinematográfico alinhado com as tendências da Contracultura.
Embora suas obras se distanciem dos temas apresentados no início deste texto (petróleo e presença branca em terras indígenas), a versatilidade e a forma de seu Cinema político apresentaram um cenário que me pareceu imutável para Assassinos da Lua das Flores: O filme estava fadado a ser emblemático, garantindo um novo capítulo para essa relação entre o tipicamente americano e o cinema.
Adaptação do livro homônimo de David Grann, Assassinos da Lua das Flores chega nas mãos de Scorsese com a estrutura narrativa modificada. Se antes, no livro, é sob a perspectiva do FBI, responsável por resolver as mortes misteriosas do povo Osage, a versão do filme é pelos olhares dos assassinos, que estavam inseridos naquela cultura, convivendo e possuindo os mais diversos relacionamentos com os nativos.
Eu definitivamente não tenho dúvidas de que a primeira versão, nas mãos de Scorsese, seria fantástica. Mas, conhecendo o diretor e o seu gosto por centrar em figuras problemáticas/vilões como seus protagonistas (como Travis Bickle em Taxi Driver, Frank Sheeran em O Irlandês), o segundo cenário é inconfundível: o filme seria nada mais nada menos que um dos melhores do ano. Tudo estava favorável a Martin Scorsese, e ele definitivamente soube aproveitar.
Sem deixar de lado suas referências, seu próprio Cinema, o filme tem uma composição tão minimalista quanto a de O Irlandês. Nessa produção, a abordagem vem do fato de estarmos olhando o que Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio) e William Hale (Robert De Niro) olham. Vem do fato de reconhecermos, desde o início, os interesses e os objetivos de ambos naquele lugar onde são forasteiros. De sabermos como observam o território, como enxergam aquelas pessoas e a cultura local.
Nesse contexto, é igualmente interessante como a mise-en-scéne (os figurinos, a fotografia, e os cenários) só chamam atenção quando é algo relativamente novo para o olhar do colonizador. Sendo assim, os planos mais deslumbrantes e que chamam a atenção demais para si estão nos ritos, nas danças dos Osage. Esses momentos, aliás, não devem ser vistos como destoantes, um erro, pois são pensados propositalmente para durar pouco.
Primeiro, Scorsese nos mostra a beleza, resultado da alegria daquele povo, para depois nos jogar em uma uniformizada apatia. Afinal, como é possível continuar enxergando cores vivas, danças, cantos e até mesmo luxúria quando não há motivos para se alegrar? Como fazer isso quando o povo Osage carrega um alvo nas costas e os responsáveis por atingi-los, eliminá-los, são justamente aqueles que conduzem o olhar do espectador?
Dessa forma, nos atemos ao minimalismo do homem branco que pensa em grandes coisas, mas age de maneira calculada, em passos lentos e pequenos. Scorsese segue isso à risca, fazendo de Assassinos da Lua das Flores um filme conversado, onde a excelência está nos pequenos gestos, nos olhares, nas interações apaixonadas e igualmente cruéis entre Ernest e Mollie (Lily Gladstone).
No entanto, o filme não dilui características clássicas de Scorsese. Sendo assim, a violência, o modo frio e apático de realizar os assassinatos continuam, ganhando um significado particular por unir a violência egoísta à violência ‘‘altruísta’’: Em Assassino da Lua das Flores, as mortes não visam apenas o benefício do enriquecimento próprio (egoísmo), mas também o bem comum da nação. Na cabeça de Ernest, de William e de todos os brancos, cúmplices silenciosos do genocídio, não basta mais tutelar, levar civilização, é preciso exterminar os selvagens que atrapalham o desenvolvimento dos Estados Unidos da América como a maior, mais civilizada e poderosa nação.
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Assassinos da Lua das Flores é um filme poderoso, espetacular e cabe ao tempo o estabelecer como uma obra-prima. Para aqueles que estão habituados a usar o X ou estão inseridos no meio cinéfilo, a qualidade da produção pode ser explicada apenas com uma imagem: aquela icônica do Scorsese, em preto e branco, com a seguinte frase: This is cinema (Isso é Cinema).
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FICHA TÉCNICA E MAIS INFORMAÇÕES:
TÍTULO ORIGINAL: Killers of the Flower Moon
ANO: 2023
GÊNERO: Crime, Drama, Historia, Western
PAÍS: EUA
IDIOMA: Inglês, Sioux, Espanhol, Francês
DURAÇÃO: 3:26 h
CLASSIFICAÇÃO: 14 anos
DIREÇÃO: Martin Scorsese
ROTEIRO: Eric Roth e Martin Scorsese | Baseado no livro de David Grann
ELENCO: Leonardo DiCaprio, Robert De Niro, Lily Gladstone, Jesse Plemons, John Lithgow, Brendan Fraser e outros
AVALIAÇÕES: IMDB
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