‘Pobres Criaturas’ escancara a “afrontosa” emancipação feminina


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Novo filme de Yorgos Lanthimos, ‘Pobres Criaturas’ é uma bizarrice estilizada e necessária sobre hierarquias de classe e gênero em múltiplas camadas

Personagens disruptivos, que não se encaixam e desafiam os moldes impostos pela sociedade tendem a fascinar as plateias desde que o Cinema existe, sejam eles gênios incompreendidos ou… monstros. No caso do último tipo citado, podemos afirmar que uma das características mais marcantes nestes seres é que eles normalmente personificam os medos e anseios do mundo real.

Como exemplo prático disso, podemos citar que o monstro grotesco criado pelo Dr. Frankenstein, cuja primeira adaptação para o cinema data de 1910, é abandonado pelo seu criador, que foge atormentado pela culpa de ter desafiado a morte, afinal naquela época havia um temor religioso latente em detrimento aos avanços da ciência.

Mais recentemente, em Edward Mãos de Tesoura (1990), o cineasta Tim Burton criou uma versão muito mais sentimental e agnóstica dessa antiga história. Nela o criador abraça a ciência e não abandona a criatura, porém morre antes de lhe preparar pra interagir com o mundo exterior, lhe deixando tesouras no lugar das mãos. Interessante que na obra citada bastam algumas podas de arbustos e cortes de cabelo exóticos para que o monstro fosse aceito na sociedade. Havia uma pauta global na época sobre a aceitação aos portadores de deficiência. Basta lembrarmos que que a ADA, a Lei dos Americanos com Deficiência, foi promulgada nos EUA justamente em 1990.

Analisando a personagem sob uma perspectiva mais filosófica, podemos dizer que Bella seria a representação humana do recomeço

Eis que agora chega a vez de Bella Baxter (Emma Stone), em Pobres Criaturas. A “pobre criatura” ressurge em 2024 como uma mulher que, após cometer suicídio se jogando de uma ponte, é trazida de volta a vida por um cirurgião maluco (Willem Dafoe) totalmente apaixonado pela ciência e seus experimentos bizarros.

Dessa vez, a “monstra” é fisicamente perfeita, ao contrário do seu criador que é todo deformado, numa clara inversão de papeis em relação à história clássica do Frankenstein. O único problema é que Bella recebe o cérebro de um bebê, portanto, precisa desenvolver novamente suas capacidades psicomotoras e cognitivas de andar, falar, fazer suas necessidades, se alimentar, etc. O que além de render muitos momentos hilários, serve de palco para a atuação mais insana da temporada, praticamente garantindo o Oscar para a Emma Stone.

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Emma Stone em ‘Pobres Criaturas’ (2023)

Analisando a personagem sob uma perspectiva mais filosófica, podemos dizer que Bella seria a representação humana do recomeço. Afinal todo recomeço real pede que libertemos a nossa criança interior, que deixemos que ela saia pra respirar e para nos guiar por um novo caminho de descobertas rumo ao autoconhecimento e a plenitude existencial.

Mas, afinal, qual é o medo ou anseio do mundo atual que esse novo monstro representa?

O exímio diretor Yorgos Lanthimos (A Favorita, O Sacrifício do Cervo Sagrado) em colaboração com a atriz e também produtora do filme, Emma Stone, são extremamente claros e incisivos trazendo a pauta da “assustadora” e afrontosa emancipação feminina, que acaba norteando e preenchendo todo o filme com uma beleza ímpar.

Afinal, como pode uma mulher adulta, ter uma cabeça “zerada” de toda a tralha inútil que o patriarcado despeja goela abaixo das mulheres desde o dia em que nascem?

Para o cientista que a criou, assim como para quase todos os homens que permeiam a trama, principalmente para o advogado cafajeste (Mark Ruffalo) que leva a Bella para explorar o mundo repleto de segundas intenções, a mulher ideal é submissa, é a que não levanta a voz, é a que não discorda, é a que pede permissão, é a que não dança nem bebe sozinha, é a que encara o próprio prazer sexual com culpa, é a que não lê, é a que não pensa.

Portanto, para os homens que a cercam, o “problema” é que Bella Baxter é uma exceção, um ponto fora da curva, uma anomalia. Afinal, como pode uma mulher adulta, ter uma cabeça “zerada” de toda a tralha inútil que o patriarcado despeja goela abaixo das mulheres desde o dia em que nascem?

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Emma Stone e Mark Ruffalo em ‘Pobres Criaturas’ (2023)

Todo o arco do amadurecimento rápido e vibrante da protagonista em Pobre Criaturas leva a inúmeras reflexões, além de ser lindo vê-la cada vez mais consciente de sua liberdade física e mental e pronta para ocupar o lugar que ela quer e não o que a sociedade determina pra ela. A revolta desesperada quando ela se depara com a fome e a pobreza no mundo, as inclinações socialistas, a vivência plena da liberdade sexual e uma incontida vontade de ser útil, fazem de Bella Baxter a mais improvável, genuína e inspiradora das criaturas.

A entrega absurda dos atores, o perfeccionismo inacreditável em todos os quesitos técnicos, a trilha sonora inspiradíssima, dão uma espécie de aval a essa história de renascimento e amadurecimento tragicômico e fazem com que aceitemos aquele mundo estranho e surreal com doses cavalares de hiper-realismo. A realidade distorcida do filme funciona como se estivéssemos vendo algo em extinção.

As várias cenas de sexo não são gratuitas, elas servem ao arco de desenvolvimento da personagem e não a denigrem nem a erotizam de forma alguma

Importante salientar que enquanto acompanhamos Bella Baxter lutar por sua liberdade, as múltiplas camadas de Pobres Criaturas oferecem ao público em geral a liberdade de decidir até aonde lhes convém ir.

O público que só deseja se divertir com uma comédia bizarra, vai encontrar isso na superfície da primeira camada e se dar por satisfeito. O público que prefere enxergar os inúmeros tipos de lentes, enquadramentos e filtros que o diretor usa, também vai se deliciar. O público que se satisfaz em ver atores e atrizes em seu máximo potencial interpretativo, também vão agradecer de joelhos.

O público que busca esvaziar pautas importantes em suas respectivas bolhas nas redes sociais também vão encontrar seu filme. Embora possamos afirmar veementemente que não, as várias cenas de sexo não são gratuitas, elas servem ao arco de desenvolvimento da personagem e não a denigrem nem a erotizam de forma alguma.

+++ Leia a crítica de ‘A Favorita’, de Yorgos Lanthimos

Mas uma coisa é certa, quem se permitir vai ter a noção exata de estar diante de uma obra muito rara e única em meio a pasteurização hollywoodiana e que felizmente vai reverberar ainda por muito tempo no imaginário popular graças a repercussão positiva da indicação aos 11 Oscars de Pobres Criaturas e a um alcance de distribuição nos cinemas poucas vezes visto para um filme tão deliciosamente surreal.

CLIQUE PARA ASSISTIR AO TRAILER

Pobres-Criaturas-Poster

FICHA TÉCNICA E MAIS INFORMAÇÕES:

TÍTULO ORIGINAL: Poor Things
ANO: 2023
GÊNERO: Comédia, Drama, Romance
PAÍS: EUA
IDIOMA: Inglês
DURAÇÃO: 2:21 h
CLASSIFICAÇÃO: 18 anos
DIREÇÃO: Yorgos Lanthimos
ROTEIRO: Tony McNamara (Baseado no romance de Alexandre Gray)
ELENCO: Emma Stone, Willem Dafoe, Mark Ruffalo, Ramy Youssef, Kathryn Hunter e outros
AVALIAÇÕES: IMDB

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