A história do Wire, a banda cult pioneira do Pós-Punk



Uma das trajetórias mais fascinantes do Rock Alternativo é a da banda inglesa Wire, formada no final de 1976 em Watford, ao norte de Londres, e que, após algumas mudanças, se consolidou com os membros Colin Newman (vocais, guitarra), Bruce Gilbert (guitarra), Graham Lewis (baixo, vocais) e Robert Gotobed (bateria). Quase todos eles tinham se formado ou estudado em escolas de arte, que na época era um ambiente onde várias bandas se formavam (Newman, inclusive, escolheu estudar arte com o objetivo único de entrar num grupo de Rock, e nem terminou o curso). Lewis, Gilbert e Gotobed tinham conhecimentos musicais limitadíssimos, e Newman não estava muito além do básico.

Estimulados pela primeira onda do Punk, começaram a compor e a participar do circuito de shows punk londrinos, onde se sentiam como estranhos no ninho por não compartilharem nem o visual e nem a atitude da maioria das bandas e do público. Vestindo-se de forma comum e interagindo pouco com a plateia, eram uma banda que não socializava com seus pares do Movimento Punk e que carregava uma intelectualidade e uma visão conceitual bem mais apurada. As letras oblíquas evitavam os gritos de guerra e as mensagens bombásticas do Punk, confundindo o público.

O encontro com o produtor Mike Thorne, que trabalhava na gravadora EMI, foi decisivo para a trajetória do grupo. Eles assinaram com a EMI e foram para o estúdio gravar o primeiro disco. Os princípios criativos eram os seguintes: Sem solos; sem decoração, se não tiver mais o que falar, pare; sem clichês de Rock; sem Americanismos; se algo soar muito familiar, descarte. Na verdade, o Wire se alinhava ao Punk por causa do momento temporal, do princípio original do “faça você mesmo” e da limitação que tinham como músicos. De resto, eles eram aliens na cena que emergiu em 1977, e tinham como principal fonte de inspiração o Art Rock de Velvet Underground, Can e Roxy Music (na fase de Brian Eno).

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Pink Flag, o álbum de estreia do Wire, é um clássico do Punk que aprofunda e desconstrói o que havia sido proposto por Sex Pistols e Ramones. São 21 músicas em 35 minutos, sendo que várias delas não passam de 1 minuto de duração. Newman trazia a maioria das músicas e melodias, Graham era o letrista principal e Gilbert explorava os barulhos e adotava uma pegada mais vanguardista. Thorne fez a banda tocar em estúdio exaustivamente buscando a máxima precisão, tendo em vista as limitações técnicas deles. O produto final é extraordinário, e se tornou uma influência marcante para uma infinidade de artistas nas décadas seguintes.

Fugindo do formato monolítico do Punk, Pink Flag apresenta uma variedade de abordagens sonoras, alternando a velocidade da performance e trazendo inovações estilísticas simples e inovadoras. “12XU”, por exemplo, é um clássico regravado por dezenas de bandas, e contém um verso sem acordes e um refrão só com acordes e sem vocal. “Strange”, regravada pelo R.E.M., tem um só acorde, enquanto “Three Girl Rhumba” é dançante, ancorada num riff viciante que foi copiado pelo Elastica na música “Connection”, que fez muito sucesso na época do Britpop.

Pink Flag teve críticas entusiasmadas (eles foram capa da New Musical Express) e vendas nanicas. Nos anos 1980, o disco foi uma das bases para o desenvolvimento do hardcore e do College Rock americano, sendo influência declarada para bandas como Black Flag, Big Black, Sonic Youth, Minutemen e Mission of Burma. Só que, ao final das gravações, o Wire já estava numa vibe criativa totalmente diferente.

Com a experiência adquirida no estúdio, eles já estavam reconstruindo sua sonoridade, que se metamorfoseou em alguns meses em algo muito mais complexo e desafiador. Na visão de Colin Newman, o novo direcionamento criativo do grupo veio da faixa “Practice Makes Perfect” e seu ritmo quebrado (um “funk torturado”, segundo o compositor), que ele considera o nascimento do Pós-Punk. De volta ao estúdio para gravar Chairs Missing, o grupo tinha se transformado. Estimulados pelos efeitos e pedais de Mike Thorne (que gostava de colecionar artefatos tecnológicos que acabaram de ter sido lançados), e com mais confiança em sua capacidade enquanto músicos, a profusão de ideias deu origem a um dos discos mais originais do Rock, uma obra-prima que explora temáticas pesadas sem obviedades e se alterna entre o Pop (“Outdoor Miner”) e experimentos sonoros claustrofóbicos (“Mercy”, que se estende por quase seis minutos), passando por uma série de formatos intermediários originais e desafiadores.

É um disco atmosférico e denso, mas que consegue ter ganchos e riffs arrebatadores e se destaca pela ironia e jogos de palavras nas letras (marcas registradas que eles levariam por toda a carreira). “Outdoor Miner” foi lançada como single, e chegou a aparecer na posição 51 no Reino Unido, mas foi retirada das paradas na semana seguinte pois uma investigação constatou que a EMI havia subornado as lojas para que os relatórios de vendas fossem inflados.

A relação com a gravadora não andava boa (em grande parte pela recusa do grupo em fazer escolhas que atendessem aos desejos comerciais da empresa), e esse fato aumentou ainda mais a tensão. Na verdade, o conflito entre arte e negócio já borbulhava nos próprios relacionamentos dentro da banda. Bruce Gilbert enxergava o Wire como um projeto artístico, tentando afastar o grupo dos clichês do Rock, enfatizando processo em detrimento do produto e rejeitando concessões ao mundo pop (ele se recusou a tocar em “Outdoor Miner” por causa disso). Lewis se alinhava com Gilbert, enquanto Newman e Gotobed puxavam a corda para o lado mais comercialmente viável.

O ambiente conturbado reinou durante a gravação do terceiro disco, 154 (cujo título fazia referência ao número de shows feitos pela banda até aquele momento). Newman e Thorne se aliaram de um lado, e Lewis e Gilbert de outro. No entanto, os desentendimentos eram velados e não existiu conflito direto. A criatividade borbulhava e isso ajudou a superar as desavenças e originou um disco monumental, que avança ainda mais em direção ao clima atmosférico, com uma multiplicidade de efeitos que deixam o ouvinte a refletir se está ouvindo uma guitarra, um teclado ou um sintetizador.

Os arranjos vocais são um destaque à parte (o barítono de Lewis é o vocal principal em três faixas, contrastando com a voz mais aguda de Newman), e o disco tem algumas das faixas mais experimentais do grupo até o momento (“The Other Window”, narrada por Gilbert, a maníaca “Indirect Enquiries”, a épica “Touching Display”, com vocal e solo de baixo impressionantes de Lewis, e a misteriosa “A Mutual Friend”), combinadas harmonicamente com delícias pop (“The 15th”, na qual Gilbert se recusou a tocar, e “Map. Ref. 41°N 93°W”, escolhida como single).

A inovadora capa que trabalha formas geométricas ao estilo modernista de Piet Mondrian (concebida por Bruce Gilbert, o que se tornou um padrão desde o álbum de estreia) e não traz o nome do disco e do grupo também gerou controvérsia com a gravadora – cabe mencionar que as capas dos dois discos anteriores também são fantásticas. Na divulgação do registro, o grupo – que já tinha o hábito de tocar músicas novas e “esquecer” tudo que tinha mais de 6 meses de idade – radicalizou. Na sessão para o programa de rádio do DJ John Peel, eles optaram por tocar somente uma música, uma pseudo jam de mais de 15 minutos intitulada “Crazy About Love” (sensacional, diga-se de passagem) e que não tinha nada a ver com o disco que deveriam promover.

E eles foram ainda além, bolando um espetáculo que intercalava canções (em sua maioria, ainda não gravadas) com outros formatos de expressão artística e que não se parecia em nada com um concerto de Rock – ele foi apresentado numa residência em novembro de 1979 no Jeannetta Cochrane Theater. O contrato com a EMI foi rompido em fevereiro de 1980, e no mesmo mês o grupo consumou seu suicídio comercial com uma apresentação ainda mais provocadora no Electric Ballroom, que gerou revolta na plateia e desprezo por parte da crítica – esse show virou o infame disco Document and Witness, lançado em 1981. Sem gravadora e sem dinheiro, o grupo se desintegrou e cada um seguiu seu caminho: Newman em carreira solo, Lewis e Gilbert como um duo e Gotobed como agricultor de produtos orgânicos. O quarto disco, que já tinha diversas músicas compostas e ensaiadas nas apresentações ao vivo, ficou em suspenso.

Após quase cinco anos de hiato, uma reunião foi arquitetada e eles sentiram que poderiam retomar o trabalho. O conceito, proposto por Gilbert, era um “marco zero”, em que eles recomeçariam como uma nova banda, buscando interagir e sentir os novos caminhos artísticos que poderiam emergir. Funcionou bem no EP Snakedrill, especialmente na faixa “Drill”, ancorada num riff repetitivo e que se tornou uma faixa emblemática nos shows, pois a banda poderia entrar num modo de improviso que estendia a música até mais de 20 minutos.

O método de criar tudo em estúdio, sem que ninguém (especialmente Newman) trouxesse canções mais ou menos prontas, se provou difícil, e as gravações do disco The Ideal Copy foram tensas. Com recursos da nova gravadora, Mute, eles optaram pelo lendário estúdio Hansa, em Berlim (onde David Bowie gravou Heroes), e Newman foi embora antes do final por discordar dos métodos de trabalho improvisados. A sonoridade – previsivelmente, para um grupo tão focado em mudança – não lembrava em nada o Wire da década de 1970, e se alinhava mais com o synthpop que havia proliferado no início da década. “Ahead”, por exemplo, parece saída de um disco do New Order. O resultado final ficou muito abaixo da qualidade estelar dos discos anteriores, e, pela primeira vez, o grupo não antecipava o futuro, limitando-se a se alinhar com o que estava em alta na época.

Newman acabou aceitando retornar por questões contratuais, e o grupo saiu em turnê pelos EUA. Decididos a não tocar nenhuma música dos três primeiros discos, foram aconselhados pelo empresário a ir um pouco antes do primeiro show para os EUA a fim de explicar para a imprensa a decisão e minimizar expectativas e eventuais transtornos. Por uma coincidência do destino, foram entrevistados por um jornalista que era tão fã do grupo que tinha uma banda chamada Ex-Lion Tamers e tocava Pink Flag integralmente em seus shows. Imediatamente, tiveram a ideia de contratar a banda para tocar antes do Wire, saciando os fãs com as músicas do disco de estreia (a essa altura já um clássico cult no mundo indie americano) e livrando o grupo dessa tarefa.

Para o quinto disco, intitulado A Bell is a Cup…Until is Struck (1988), Newman se impôs e, a pedido da gravadora, uma mentalidade mais pop foi incorporada. É o disco mais palatável da banda, mas ainda assim mostrava um grupo que não conseguia mais surpreender criativamente como nos anos iniciais e que ainda tinha aversão a qualquer estratégia comercialmente mais efetiva-as letras, por exemplo, continuavam ininteligíveis, e os vídeos promocionais beiravam o ridículo. Destaque para outro single com cara de New Order, a pegajosa “Kidney Bingos”.

Os dois discos que fecharam a década seguiram ideias de Gilbert, e são mais interessantes pelo processo criativo do que pelos resultados. Em It’s Beginning to and Back Again, eles colocaram em prática a original ideia de retrabalhar faixas dos dois discos anteriores gravadas ao vivo, retirando partes e regravando em estúdio. Os resultados foram mornos, e o único destaque do disco é “Eardrum Buzz”, faixa dançante encomendada como single pela Mute e que se tornou o segundo maior sucesso da carreira do grupo, com um clipe bem bolado que passou muito na MTV e que contava com participação especial de vários artistas conhecidos do universo alternativo.

O projeto seguinte, também na linha de Gilbert, foi o disco The Drill, que recria a faixa “Drill” em vários formatos e remixes diferentes, explorando variações no processo de repetição monorrítmica da faixa, batizado por eles de “DUGGA”. Curioso, mas nada além disso.

O foco na tecnologia eletrônica passou a dominar o processo criativo do grupo, em geral com resultados que limitavam o potencial criativo, num típico caso do recurso tecnológico sobrepujando a espontaneidade e a amplitude de ideias. A insatisfação de Robert Gotobed, que não gostava do mundo digital e via seu papel de baterista humano sendo trocado por percussões programadas, chegou ao extremo no disco Manscape (1990), e ele saiu do grupo antes da turnê de lançamento.
Os três membros remanescentes ainda lançaram mais um disco pela Mute, The First Letter, adotando o nome de Wir (referência óbvia ao fato de serem apenas três naquele momento). Apesar de alguns pontos altos (como a assustadora “Ticking Mouth”), o registro não foi suficientemente bom para apagar as arestas existentes, e o grupo entrou em novo hiato, dessa vez estendendo-se por toda a década de 1990.

Enquanto trabalhava em outros projetos, Newman decidiu criar um site e um selo (intitulado pinkflag) para divulgar de forma independente gravações ao vivo nos formatos de áudio e vídeo, aproveitando-se da crescente visibilidade que o grupo havia adquirido ao longo dos anos.

No final da década de 1990, o Wire estava pronto para uma nova reunião. A faísca para isso foi um convite para tocar músicas antigas em um show. Como a decisão mais óbvia era não aceitar, eles pensaram que o típico modo Wire de contrariar as expectativas seria apropriado, e o convite foi aceito pelos quatro membros originais.

Isso foi um ponto de virada, dando início à melhor versão do Wire desde 154. Para a gravação dos Ep’s Read and Burn, volumes 1 e 2, que tiveram algumas de suas músicas compiladas no LP Send (2003), Newman e Gilbert trabalharam juntos num processo inusitado de gravação. Newman aproveitou a década de 1990 para desenvolver suas habilidades de gravação e mixagem, e havia montado um estúdio em sua casa. Como Lewis estava morando na Suécia desde o final da década de 1980, ele mandava suas contribuições e recebia o material que estava sendo trabalhado por e-mail. As baterias de Gotobed foram aproveitadas de apresentações ao vivo e alteradas em estúdio.

Wire em 2020

O conceito das novas músicas era um Electropunk violento, acelerado e minimalista, com letras de poucos versos e vocais gritados. O resultado é de cair o queixo, e, embora totalmente original e com identidade de Wire, se alinhava com o Pós-Punk revival dos anos 2000, especialmente pela ausência do baixo (marca registrada do White Stripes, por exemplo). Send resgata o perigo e a perversidade tão admirados na versão Wire anos 1970 e que andavam meio sumidos desde que eles retomaram as atividades em meados da década de 1980.

O sucesso de crítica e de vendas de Send deu início a um novo ciclo de apresentações ao vivo, desta vez mesclando as músicas do último disco com canções antigas, especialmente de seu irmão espiritual mais afiado na discografia do grupo: Pink Flag. O entusiasmo com o novo status do grupo (que chegou a ter a ilustre visita do fã David Bowie no camarim de um show nos EUA) não foi generalizado. Bruce Gilbert não aguentava mais o ritmo das turnês e sentia que seu tempo na banda havia se esgotado. Ele deixou o Wire em 2004.

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Uma nova crise se instalou, mas, dessa vez, Newman assumiu de vez as rédeas do grupo como empresário, produtor e principal compositor da banda, e eles retomaram as atividades. O clima melhorou e a banda entrou numa nova fase, mais harmônica e com maiores retornos financeiros. Object 47 foi o título do primeiro disco lançado pelo novo trio, seguido, já como quarteto – o guitarrista Matthew Simms assumiu o posto de guitarrista que estava vago – por Red Barked Tree (2010) e pelo brilhante Change Becomes Us (2013). Esse último se destaca por ser uma recriação do disco perdido de 1979-1980, que seria o quarto álbum e estava engavetado desde então. A banda entrou num período muito produtivo de cinco álbuns no período de 2015 a 2020, mostrando energia renovada e revelando o brilho de sua obra para um número cada vez maior de fãs.

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