“Queria que ficássemos por mais tempo”
“Eu também”
Reconstruir momentos distantes de nossas vidas é uma das tarefas mais difíceis que a mente humana pode realizar. Sempre existirão lacunas, dúvidas e, na maioria dos casos, a intrínseca tendência humana à afetividade, o que acaba deixando tudo melhor do que aquilo que realmente foi vivenciado.
A talentosíssima diretora escocesa, estreante em longas metragens, Charlotte Wells, repete aqui os traços do que já havia ensaiado em seus três primeiros projetos. Mas se nos curtas Tuesday (2015), Blue Christmas e Laps (ambos de 2017), a diretora oferecia pequenos recortes do cotidiano – com todos os elementos necessários para construção do que precisava ser dito e sentido -, em Aftersun (NE: destaque na lista de Filmes de 2022), talvez pelo caráter autobiográfico da obra, faltam inúmeros elementos para tal construção.
Afinal, o filme expõe as memórias íntimas da diretora e, numa decisão perigosa mas extremamente inteligente, ela optou por não completar as lacunas que permeiam seu passado, deixando essa tarefa para o público, mediante as vivências e bagagens de cada um.
Portanto, fatalmente, estamos diante de um filme que vai dividir muito as opiniões. Aqueles que não conseguirem completar as lacunas propostas, provavelmente acharão o filme lento, maçante e sem enredo. Por outro lado, aqueles que conseguirem completar os espaços em branco, utilizando suas próprias vivências, estarão diante de uma extasiante, melancólica e profunda imersão num filme que trata sobre a frágil e ao mesmo tempo poderosa relação entre pai e filha e sobre a relação entre memória e tempo.
A trama acompanha Sophie, uma mulher na faixa dos trinta e poucos anos que, ao remexer em fitas de vídeo e fotos antigas, relembra uma viagem de férias que fez vinte anos atrás com o seu pai. Não há muita informação sobre os motivos e circunstâncias daquela viagem, mas sabe-se que o pai é separado da mãe e está se dedicando ao máximo para fazer com que sua filha tenha a viagem perfeita.
Graças às atuações absurdamente convincentes de Paul Mescal, mais conhecido pela minissérie Normal People, e da estreante Frankie Corio, fica nítido o amor que um nutre pelo outro. Assim como também é nítido que o pai está passando por problemas, mas como testemunhamos tudo pelos olhos de uma criança, a “inocência” da protagonista naquela época não nos permite saber ao certo do que se trata.
Entre as alegrias dos jogos, paqueras, passeios turísticos e dias inteiros na piscina sob o sol, estão escondidos talvez problemas financeiros, ou de alcoolismo, ou até mesmo algum problema mental mais grave como depressão ou bipolaridade. Porém tudo isso se perde no terreno da subjetividade infantil e é justamente sobre esse aspecto que a adulta Sophie se debruça vinte anos depois. E ao reexaminar estas memórias mais dolorosas, o filme ganha até contornos de suspense.
O aspecto realista e semidocumental é outro grande acerto da direção, que mescla as “filmagens caseiras” com planos e ângulos que quase nunca entregam toda a mise-en-scène, reforçando o aspecto frágil e reduzido da reconstituição dos fatos baseada em lembranças afetivas longínquas.
Soma-se a isso, uma trilha sonora irrepreensível, com hits radiofônicos dos anos 90, com destaque para o uso certeiro de uma fantasmagórica versão de “Tender”, da banda britânica Blur; uma versão à capela de “Under Pressure”, do Queen; e o uso emblemático de “Losing My Religion”, do REM, em um dos momentos mais tensos do filme.
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Nunca é fácil ressignificar momentos bons, e é justamente nesse aspecto que “depois do sol” (tradução literal do título) se posiciona. Partindo de uma trama simples, tediosa e até banal, mas que, se observada com atenção, pode revelar coisas tão grandiosas que só é capaz de notar quem já sentiu problemas maiores serem ofuscados pelo brilho intenso dos dias de sol, e que só se revelam anos mais tarde, nem que seja na escuridão de uma noite insone ou numa pista de dança.
MAIS INFORMAÇÕES:
Título Original | Ano: Aftersun | 2022
Gênero: Drama
País: EUA, Reino Unido
Duração: 1:42 h
Direção: Charlotte Wells
Roteiro: Charlotte Wells
Elenco: Paul Mescal, Frankie Corio, Celia Rowlson-Hall, Sally Messham e outros
Data de Lançamento: 20 de outubro de 2022 (Mostra Internacional de Cinema de São Paulo)
Censura: 14 anos
Avaliações: IMDB | Rotten Tomatoes
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