‘Nove Dias’ imagina o processo reencarnatório com muitas reflexões e diálogos brilhantes

“— Fiz o que pediu. Observei várias pessoas e escolhi uma que tenho observado de perto.
— E do que você não gosta nessa pessoa?
— Ele se odeia. Ele se acha um fracassado e tudo que faz não importa e é vergonhoso. Com certeza ele já sentiu tanta dor que chegou a um ponto onde ele não quer sentir mais nada. Agora o entorpecimento o faz se sentir seguro. Mas sei que isso só está envenenando o que restou dele. E lá no fundo, acho que ele também sabe disso.”

Em 2020, coincidentemente, foram lançados dois excelentes filmes, não doutrinariamente espiritualistas, mas que se propuseram a responder uma pergunta bem específica: como é a vida após a morte?

Um deles foi a aclamada animação do mega estúdio Pixar/Disney, Soul, vencedora de 2 Oscars e o outro foi o filme independente Nove Dias do brilhante diretor e roteirista brasileiro estreante em longas metragens, Edson Oda, vencedor de 5 prêmios em festivais menores, dentre eles o de melhor roteiro no Festival de Sundance.

Cada um à sua maneira, estes filmes propõem olhares extremamente criativos e únicos ao descreverem o lugar entre o mundo espiritual e o mundo físico, o qual tomarei a liberdade aqui de chamar de limbo. O lugar que prepara, testa e define qual alma está apta para vir para Terra ou não.

Se em Soul o limbo remete a uma grande escola superlotada, com professores, aulas e excursões, cujo aprendizado e a descoberta do dom de cada um, dão o aval para que suas respectivas almas encarnem na terra, o limbo proposto em Nove Dias é bem mais vazio, introspectivo, vasto e simples, mas não menos intrigante.

Na realidade metafísica de Nove Dias, acompanhamos um homem isolado em uma pequena casa no meio de um grande deserto, conduzindo uma série de entrevistas com algumas almas humanas, para conceder a apenas uma delas a chance de finalmente nascer.

Ou seja, é como se fosse uma entrevista de emprego na qual a aderência dos candidatos à vaga seria basicamente a índole intrínseca de cada essência. Porém, essa escolha, aparentemente simples, tem se mostrado extremamente árdua para o entrevistador interpretado por Winston Duke (Pantera Negra, Nós), pois embora já tenha feito esse tipo de seleção várias vezes, ele anda muito apreensivo e com medo de escolher errado, pois uma de suas escolhas anteriores acaba de cometer suicídio.

Partindo dessa premissa, acompanhamos os embates entre o entrevistador e os entrevistados, cuja dinâmica estabelecida vai eliminando os candidatos mais “fracos” um a um, devendo restar apenas um “vencedor” em exatos nove dias, talvez numa metáfora aos nove meses de gestação. Mas afinal, o que garante que uma alma terá uma existência feliz e plena, em um planeta cada vez mais desafiador, intolerante e violento como o nosso?

O que já parecia promissor acaba ganhando muito mais camadas e substância quando o excelente roteiro do Edson Oda, vai destrinchando e humanizando também o personagem do entrevistador. Embora existam compensações lindas para os eliminados, o seu poder de veto pesa quase como uma maldição e a escolha final chega tão incerta e amarga quanto um tiro no escuro, que apesar de injusta, catalisa o poder transformador da libertação de um desejo sonhado e represado há muito tempo.

+++ Leia a crítica de ‘Divaldo, O Mensageiro da Paz’, de Clovis Mello

Nove Dias é um filme hipnótico e com um texto belíssimo, que prende a atenção e surpreende por imaginar e tratar uma situação existencial tão abstrata de uma maneira tão contundente e racional. Independente das crenças de cada um, o diretor Edson Oda conseguiu construir um mundo etéreo muito crível graças a falta de qualquer pretensão religiosa e graças também a força de seu elenco estelar e de seu roteiro irretocável.