‘Men’ desnuda a masculinidade tóxica em uma rica alegoria de horror


Jessie Buckley em Men, de Alex Garland

Tudo em Men (Homens, numa tradução literal, mas que ganhou o título de ‘Faces do Medo’ para o mercado brasileiro) é feito de forma a desenhar de maneira extremamente gráfica um mal que está entranhado em nossa sociedade há séculos.

Esse mal tem várias vertentes e nuances. Podemos chamá-lo de machismo, sexismo, patriarcado e masculinidade tóxica, que somados a uma religiosidade também tóxica, prega a eterna culpa de Eva, personagem bíblica responsável pela expulsão do paraíso ao fazer Adão pecar. Um estigma tão enraizado em nossa sociedade que é praticamente impossível uma mulher se desvencilhar dele.

Refiro-me a esta famosa passagem bíblica porque é uma das primeiras metáforas das muitas que o filme usa para compor a colcha de referências culturais e históricas que permeiam as intenções da obra, tendo a culpa feminina como principal catalisador.

Para este exercício incômodo, o diretor e roteirista Alex Garland sai um pouco do terreno da ficção existencialista de seus filmes anteriores, os ótimos Ex-Machina (2014) e Aniquilação (2018), entregando em seu novo trabalho uma alegoria revestida de terror psicológico e que provavelmente, pela sua linguagem imagética e textual contundente e repleta de símbolos, vai dividir muito as opiniões.

Foto de Jessie Buckley e Rory Kinnear em cena de Men
Jessie Buckley e Rory Kinnear

Para fazer com que estes temas tão profundos e delicados sejam apresentados, o filme utiliza a história de Harper, numa interpretação belíssima da Jessie Buckley, uma mulher que acaba de sofrer um término trágico de relacionamento e resolve se dar ao luxo de alugar uma bela casa de campo a fim de relaxar junto a natureza e processar seu sofrimento.

Porém seus planos de sossego caem por terra ao ver um estranho homem ao redor da casa. Importante salientar que todas as interações da protagonista com os homens que encontra naquela pequena vila serão pautadas pelos males descritos no início do texto. Cada um deles representando um tipo de abuso sofrido pelas mulheres ao longo dos séculos.

Temos desde o adolescente birrento e egocêntrico (mães entenderão), o falso bonzinho que não hesita em ficar violento quando percebe que ela está querendo partir, temos também o padre tarado e retrógrado para reforçar ainda mais o sentimento de culpa e punição contrita, o policial que quando está em ronda com sua parceira oferece proteção, mas quando está sozinho a descredibiliza e cruza os braços, dentre outros tipos corriqueiros em nossa sociedade, mas que pelas lentes talentosas de Garland se tornam o pesadelo da protagonista.

Além desses tipos mais comuns, o filme se debruça sobre o misticismo de lendas antigas pagãs, como a do homem verde, num esforço quase heroico de levar as metáforas propostas até às últimas consequências.

Importante notar que todos os detalhes em cena apresentam uma estreita ligação com a mensagem que o filme quer passar, então nada é aleatório, nem mesmo a paleta de cores, a luz ou a falta dela, etc. Vide o laranja sufocante do entardecer nas cenas que retratam o final do relacionamento, anunciando a chegada da escuridão, ou o verde intenso da natureza em cenas belamente fotografadas, onde a personagem busca por paz e renovação.

Aliás, a natureza tem papel primordial como representação do sagrado feminino. Dentre inúmeras sutilezas, há que se notar como a natureza sempre se renova e toma conta de tudo, apesar de haver também as construções (em ruínas) dos homens em seu meio.

Numa cena repleta de simbolismo, a protagonista encontra um túnel em meio a floresta e começa brincar com o eco de sua própria voz até que é assustada pela presença de um homem, o que denota claramente a interrupção do momento mágico do reencontro da mulher com sua voz, com sua essência. O túnel fechado no qual ela esbarra logo em seguida só reforça a máxima machista de que não é “permitido” que uma mulher sozinha se divirta ou se baste. Só lhe resta então tomar um caminho não natural, abandonando a floresta imponente e seguindo por um descampado no qual a vegetação baixa a deixa vulnerável, desprotegida e portanto longe de sua essência.

Jessie Buckley em cena de ‘Men’

De metáfora em metáfora Men segue até seu aterrorizante desfecho, quando apela para um horror corporal intenso, apenas para demonstrar que quando o homem se apropria do sagrado feminino os erros de formação são inevitavelmente passados de geração pra geração. Assim como também é inevitável o peso da culpa por “suscitar” tais comportamentos bizarros nos homens. Cabe a mulher ter a força de estancar o mal na fonte.

+++ Leia a crítica da série ‘Missa da Meia-Noite’

O tão esperado alívio e conforto real vem da sororidade que rompe o ciclo nocivo, lembrando que vai existir nova vida, nova luz, nova esperança, apesar dos danos, apesar das culpas, apesar dos homens.


FICHA TÉCNICA:

Poster de 'Men', de Alex Garland

Título Original | Ano: Men | 2022
Gênero: Horror, Drama, Fantasia
País: EUA
Duração: 1h40min
Direção: Alex Garland
Roteiro: Alex Garland
Elenco: Jessie Buckley, Rory Kinnear, Paapa Essiedu, Gayle Rankin, Sarah Twomey, Sonoya Mizuno  e outros.
Data de Lançamento: 01 de setembro de 2022 (Brasil)
Censura: 16 anos
Avaliações: IMDB | Rotten Tomatoes
Curiosidades: Esse é apenas o terceiro filme dirigido por Alex Garland, em todos houve a participação da atriz Sonoya Mizuno

 


O TRAILER:

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