‘Supercarioca’, do Picassos Falsos, já nasceu clássico, e o tempo tratou de ratificar


Na década de 80 a maior parte das bandas do rock nacional olhavam para fora, mostravam trabalhos visivelmente inspirados no que se fazia na Inglaterra e nos EUA, o que nem sempre era percebido pelo público devido à escassez e demora para a chegada das informações, o que não aconteceria nos dias atuais. Na corrente contrária, bandas como Black Future e Picassos Falsos buscavam uma linguagem diferente, que dialogasse com as referências de fora mas que agregasse também a rica musicalidade brasileira.

Picassos Falsos foi formado no Rio em 1985. Inicialmente batizado de O Verso, a banda logo mudaria de nome, utilizando o título de uma música de Alvin L, produtor da primeira e “abençoada” demo. “Quando nos juntamos, garotos, queríamos reproduzir o que representava para a gente um ‘novo som’. Os primeiros sons que levamos eram muito influenciados por U2, Echo and the Bunnymen, Legião Urbana, The Cult, The Cure, The Alarm, The Smiths e afins. Não por acaso, nos batizamos de O Verso. Muito cedo, porém, nossas outras influências apareceram”, relembram.

Graças a essa fita demo que continha três canções e de forma inusitada tocavam bastante na Radio Fluminense, conseguiram um contrato com o selo Plug, espécie de braço alternativo da gravadora BMG/Ariola.

Em 1987 a banda lançou seu homônimo primeiro álbum e conseguiu alta rotação nas rádios de todo o país com as faixas “Carne e Osso” e “Quadrinhos”, essa última fez parte da trilha sonora do seriado Armação Ilimitada, da Rede Globo. A rádio Antares (FSA) tocava bastante num programa de rock que rolava nas tardes de sábado. O álbum foi produzido pelo Jornalista José Emilio Rondeau – escolhido devido ao seu trabalho de produção do primeiro da Legião Urbana.

O relativo sucesso do primeiro álbum, que seguia por uma sonoridade mais voltada para o que era feito na década de 80, unindo levadas funk e elementos de pós-punk, levou-os a fazerem vários shows e deixou as portas abertas para o álbum seguinte, “Supercarioca”, lançado cerca de um ano depois e considerado por muitos o álbum mais subestimado do rock nacional da década de 80.

“Supercarioca” é um álbum ousado – e alguns dirão de uma banda pretensiosa (no melhor dos sentidos) – em sua proposta, e que, de forma não proposital, segundo Humberto Effe, se tornou conceitual ao falar das mazelas da cidade do Rio de Janeiro (não tão maravilhosa assim) em várias letras, e estampada na foto da capa. Sobre o título, Humberto explicaria anos depois que a ideia veio a partir de um trecho da música “Magrelinha”, de Luiz Melodia: “O sonho seu vem dos lugares mais distantes, terras dos gigantes, Super Homem, super mosca, super carioca, super eu, super eu”.

O disco de estreia já delineava alguns elementos que a banda voltaria a trabalhar efusivamente em ‘Supercarioca’: ‘Bater à porta’ tem uma levada de xaxado com solos de guitarras; ‘Carne e Osso’ tem referências ao samba ‘Se Você Jurar’, de Ismael Silva; e ‘Ultimos Carnavais” tem repiques de samba.

As influências que se apresentavam discretas no primeiro álbum afloraram de forma mais intensa. O álbum marca também a entrada de Romanholli no baixo. Resultado: um disco muito à frente de seu tempo, misturando ritmos nacionais (samba, baião, MPB) com rock (com uma pegada mais rock’n’roll).

“Supercarioca”, apesar de bem recebido pela crítica, não foi bem compreendido. Suas qualidades, suas influências em artistas nas décadas seguintes viriam a mostrar o quanto a banda estava alguns anos à frente do que estava sendo produzido e como prenunciavam o tipo de som que predominaria no rock nacional posteriormente: a mistura do rock dos 60 e 70, com funk, soul e música brasileira em suas várias vertentes.

Mas a gravadora não botou fé, lembra Humberto Effe: ” Quando o ‘Supercarioca’ estava pronto, na hora de partir para a estrada, após alguns meses de seu lançamento, nos comunicaram que nada iriam fazer sobre o disco, nenhuma publicidade e nada em rádio. Sugeriram que gravássemos outro pois aquele havia morrido para a gravadora”.

“Supercarioca” surpreende e atrai já na faixa de abertura, ‘Retinas’, uma espécie de xaxado carregado no pandeiro e entrecortado por microfonias, riffs e solos de guitarra emulando uma sanfona, enquanto Humberto declama seus versos: “Eu tenho duas caras, quatro olhos para poder te enxergar”. O trabalho percussivo também chama a atenção. Se a abertura já é acachapante, o encerramento é não menos impactante, com a faixa que dá nome ao disco, ‘Supercarioca’, uma das faixas mais rock do disco. Sua pegada lembra em muito o que a banda compôs no primeiro álbum, com uma linha de baixo funk repetitiva que até lembra Titãs. Na letra, Humberto mais uma vez não poupa versos afiados para narrar o “carioca way life”: “o supercarioca chegou com seu emblemas culturais, com samba, bola e outras coisas mais…esquecendo a vida entre copos de cerveja”. Bem poderia ter sido um hit nas rádios, mas não foi.

Ao longo das onze faixas mostram-se em seu momento mais inspirado, e a produção do percussionista e produtor Geraldo D’arbilly, que já havia produzido o hip-hop do Gueto, em “Estação Primeira”, e Inocentes, em “Adeus Carne”, ambos de 1987, consegue tirar o melhor possível do quarteto carioca, com a voz de Humberto sempre pairando de forma onipresente sobre os instrumentais precisos compostos pela banda. Onze joias.

“Sinto mais distante porque o mais distante é o melhor pra mim”, canta o vocalista em ‘Bolero’, outro momento de pegada rock nas distorções da guitarra, mas com um baixo funk. No meio disso, o uso de forma incidental da melodia tirada da canção “Third Stone from The Sun”, de Hendrix. Uma canção carregada de saudade: “A vez que penso é a vez que choro por alguém bem mais distante”.

O caldeirão de influências e referências de “Supercarioca” é enorme e não se resume à música, Frank Miller e sua graphic novel “Ronin”, também estão presentes na letra da malemolente ‘Rio de Janeiro’, que faz uma ponte com os deslizamentos de terra que aconteceram naquele ano na cidade: “Um herói surgiu por entre os escombros, entre ferragens e palmeiras.. e quando ferve o sol, desaba a chuva…as estrelas caiam nessa avenida anunciando um deus que pode estar entre a lama”. Interessante que a faixa faz a ponte ou prenuncia o surgimento do anti-herói, do supercarioca da faixa seguinte.

Outro personagem dos quadrinhos também está presente, “Wolverine”, outra das faixas mais rock, com as guitarras de Gustavo Corsi rangendo numa mistura de distorção e wah-wah, enquanto a letra ironiza o contraste: “eu vejo carnavais em grande temporais…a felicidade existe quando todo mundo canta assim, e por isso acredite no que eu tenho pra falar somente sobre mim”. Fica claro que quase todas as músicas não seguem um arranjo direto, mas que sempre abrem espaço para mudanças de ritmo e o acréscimo de um detalhe que ou referência que a diferencie, que enriqueça. Está lá em ‘Sangue’, faixa com um suingue de funk e guitarras pesadas e tentando uma levada de samba meio torto; “Fevereiro’, canção com elementos percussivos e toques de afoxé, mas que de repente ganha um violão de inspiração flamenca e novamente uma letra que retrata a realidade do Rio de Janeiro: ” Um navegante pronunciou aflito com seus escritos e só, que uma cidade julgada a mais bela em poucos dias viraria pó… Já que hoje o morro não desce mas desaba no meio da rua, mostrando da maneira mais sutil quem faz o mais bela carnaval do planeta”.

Restam ‘O Homem Que Não Vendeu a Alma’ (título de um filme da década de 60), com letra sobre sinceridade, sobre ser verdadeiro: “Sobre meus sonhos algo pra se ver, sobre o oceano algumas palavras talvez você possa compreender, embaixo do meu rosto nunca existir máscara”; ‘Sangue’, com excelente trabalho de timbres de guitarras; e ‘Fevereiro 2’, com levada bastante percussiva, inclusive nas batidas do violão, e que ganha um xilofone com toques caribenhos e mais um tamborim; as faixas mais diretas, mas não menos interessantes, de “Supercarioca”.

‘Marlene’ tem um trabalho magistral de letra e voz de Humberto. A levada é no estilo partido alto em ritmo mais lento, com as batidas da caixa cheias de eco e as guitarras soando entre agonizantes e misteriosas. É, a faixa mais longa do disco, traz referências a Noel Rosa, ao pegar emprestado os versos: “E às pessoas que eu detesto,diga sempre que eu não presto, e que o meu lar é o botequim, e que eu arruinei sua vida, e que eu não mereço a comida que você pagou pra mim”.

+++ Leia a crítica de ‘Tudo ao Mesmo Tempo Agora’, dos Titãs

“Supercarioca” é um álbum em que o casamento entre música e letra funciona de forma excelente, como se não houvessem outra forma de serem a não ser a que definitivamente acabou ficando. A banda se esmerou nos instrumentais e Humberto Effe nas letras, das melhores já escritas, e vocais. O resultado foi um dos melhores já produzidos no rock nacional, quiçá na música brasileira. Influenciou muita gente e continua a ser referência para outras tantas.


Capa álbum "Supercarioca", da banda Picassos Falsos

FAIXAS:
01. Retinas
02. Bolero
03. Marlene
04. Verões
05. Wolverine
06. Sangue
07. O homem que não vendeu sua alma
08. Fevereiro
09. Fevereiro 2
10. Rio de Janeiro
11. Supercarioca

 


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