Glenn Branca sintetiza de forma perfeita o termo ‘guitar band’ em ‘The Ascension’



Vanguardista desde os tempos em que esteve no Theoretical Girls – banda novaiorquina seminal no final dos anos 70 e uma das responsáveis pela chamada No Wave – , em trabalho solo Glenn Branca (1948-2018) deu prosseguimento ao seu trabalho de pesquisa musical com o aprofundamento do uso das guitarras, algo que viria a ser fundamental no que acabou sendo chamado de guitar band, termo usual na mídia brasileira (na década de 80) para descrever nomes musicalmente tão díspares como R.E.M. e Sonic Youth, e nem tanto como Dinosaur Jr., Band of Susans (a primeira banda de Page Hamilton), My Bloody Valentine ou The Wedding Present.

Mais que isso, os experimentos do maestro com dissonâncias, afinações não convencionais, progressões harmônicas, cacofonia e atonalidade iriam, anos depois, se perpetuar ramificações musicais diversas como o Math Rock. Embora esteja intrinsecamente impresso no DNA de muitos (gêneros) e muitas (bandas), nem sempre o nome e a música de Branca tem a devida citação, algo que precisa ser corrigido com urgência, como mostra The Ascension.

Prosseguindo no trabalho de experimentações iniciado em Lesson nº 1 (1980), em The Ascension, Branca avança no território de desbravamento das possibilidades do uso das guitarras, e aqui elas se tornam protagonistas maiores nessa encenação do que se convencionou chamar de orquestras de guitarras, que ele viria a desenvolver ao longo das décadas seguintes, em par com nomes de vanguarda como Rhys Chatham – com quem Branca teve certa rivalidade por algum tempo.

Aqui são quatro guitarras (às vezes tocando a mesma nota em oitavas diferentes), baixo e bateria (geralmente tribal), criando tramas instrumentais com dinâmicas cadenciadas ou puras e genuínas explosões de noise repetitivo e ondas, ao melhor estilo Drone Music. Lee Ranaldo (Sonic Youth) é um dos quatro guitarristas presentes na gravação. Por sinal, alguns nomes da cena novaiorquina oitentista em algum momento trabalhou com Branca, incluem-se Thurston Moore (também do Sonic Youth) e Page Hamilton (Helmet), dentre os mais conhecidos.

Se essencialmente The Ascension prima pelo barulho construído por guitarras frenéticas em ponto de ebulição, como uma espécie de sinfonia do caos, é impossível não notar a grande onda de desolação nas entrelinhas de cada nota que jorra do instrumento. Essa sensação é construída através dos timbres agudos ou pela progressão melódica das guitarras, cada qual trilhando um caminho diverso em fraseados curtos, mas que juntos criam uma certa organização que alguns diriam ser uma anti-melodia.

A abertura com uma linha repetitiva de baixo em “Lesson nº 2” dá um protagonismo instantâneo às quatro cordas, que ao longo de quase cinco minutos irá travar luta árdua (e perder) com o emaranhado de guitarras que vai surgindo e se avolumando ao longo do arranjo e criando uma desconstrução que desemboca em silêncio, retomando de forma impactante, com distorções assombrosas em crescendo que criam um inferninho noise descomunal.

Em geral os arranjos são construídos por andamentos quebrados, como na faixa título, uma longa sinfonia de mais de doze minutos de barulho construído por guitarras Drone. Já na longa “The Spetacular Comodity”, que remete claramente ao Sonic Youth (na verdade o inverso), uma locomotiva vai avançando lenta e progressivamente, até finalmente acelerar e se tornar uma grande máquina ensandecida e desgovernada abrindo caminho loucamente e prestes a se chocar assustadoramente com algo pelo caminho. Em “Light Field (In Consonance)”, a marcha rítmica também cria esse senso de que está a avançar, mas em direção ao futuro, se encontrando inevitavelmente com as batidas do Krautrock de bandas como NEU!, por exemplo.

O senso de desconstrução é algo que parecer emergir da alma de muitos artistas nova-iorquinos que acompanharam de perto o período de decadência da cidade no final dos 70 e início dos 90, está na alma do próprio Sonic Youth e também nos Swans, de Michael Gira. É como se os fantasmas escondidos nos escombros de uma cidade grande e repleta de pontos totalmente desolados estivessem a assombrar o inconsciente, emergindo no trabalho de artistas diversos. Ou como se o futuro fosse apenas um termo vago e sem muita representatividade para quem quer viver o aqui e agora, já que é o que se tem, embora não seja tão palpável ou concreto, mas também incerto e idiossincrático.

+++ Leia a crítica do álbum ‘Buy’, do Contortions

Totalmente instrumental, This Ascension compartilha desse sentimento. Ao mesmo tempo é aquele tipo de álbum surgido para quebrar paradigmas e propor novas abordagens para o uso da guitarra, uma heresia para aqueles acostumados ao seu uso na forma convencional, Branca não estava preocupado com isso, seu trabalho desde os primórdios de suas criações musicais se pautaram na Avant Garde, proposta que ele levou adiante até os últimos dias de sua trajetória musical.

Se o termo guitar band sempre soou algo vago, aqui ele encontra seu real significado e origem.


Capa do álbum The Ascension, de Glenn Branca

INFORMAÇÕES:

LANÇAMENTO: Novembro de 1981
GRAVADORA: 99 Records
FAIXAS: 05
TEMPO:  42:09 minutos
PRODUTOR: Ed Bahlman
DESTAQUES:  “Lesson nº 2”, “Light Field (In Consonance)”
PARA QUEM CURTE: Noise, No Wave, música de vanguarda, Drone, Sonic Youth, UT
CURIOSIDADES: Em 1989, o álbum entrou na lista de melhores álbuns da década de 80 feita pela Revista Bizz | Em 2003, David Bowie o incluiu em uma lista de seus álbuns favoritos.

 


 

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