‘O Poço’ ratifica cinema espanhol como celeiro de ótimas e originais ideias


Cena do filme espanhol O Poço (el Hoyo)

Goreng e Trimagasi – Nível 48

Um homem (Goreng) acorda dentro do que parece ser uma profunda prisão vertical de concreto (o poço) e é saudado por outro de mais idade (Trimagassi), que entre outras coisas lhe informa que estão no nível 48, e que isso não é de todo ruim, pois quanto menor o número melhor. Enquanto conversam, uma luz se acende e uma plataforma vem descendo pelo meio da cela, parando por alguns instantes no nível em que estão, e trazendo pratos de comida diversos com os restos do que sobrou nos níveis superiores, descendo logo em seguida.

Cena do filme O Poço, da Netflix

O funcionamento do poço

Como já dito, o poço é dividido em vários níveis. A comida é colocada no nível zero e vai descendo. Aqueles que estão nos primeiros níveis tem comida farta e tendem a se empanturrar o máximo que podem, pouco se importando se irá sobrar para os que estão nos níveis mais baixos. Alguns são até perversos, desperdiçam e cospem na comida como forma de se vingarem daqueles que estão abaixo e que em um outro momento possivelmente estavam em níveis acima. Isso porque cada dupla permanece num nível por apenas um mês.

Em algumas cenas e através de diálogos, ficamos sabendo que por detrás da estrutura existe uma Administração e regras, uma delas é que a comida só pode ser consumida enquanto a “mesa” encontra-se no nível da dupla, caso peguem algo para ser consumido posteriormente, podem ser torturados por frio ou calor.

Outra regra é que cada pessoa colocada lá pode escolher algum objeto para levar consigo.

Goreng e Trimagasi – Nível 171

Com a mudança da dupla, que até havia construído uma relação de amizade, para um nível mais baixo, o filme adquire novos contornos. Se no primeiro momento a narrativa o aproximava de um Drama, um filme sobre prisão com toques Sci-Fi, o segundo ato é em direção ao Horror em sua forma mais assustadora, aquele em que é provocado pelas próprias pessoas ao redor.

No nível 171, onde a comida não chega e o instinto de sobrevivência fala mais alto, O Poço conduz por uma jornada para baixo, onde as atitudes mais vis e sanguinárias podem ser justificadas pelo dilema: matar ou morrer. E é nessa hora que se percebe o quanto a escolha do objeto para levar junto consigo pode ser determinante para a sobrevivência naquele espaço hostil.

Nesse segundo momento, e também no caminho para o ato final, O Poço explora a violência de forma brutal, podendo chocar os menos afeitos.

O aprendizado no poço

Com o passar do tempo e o contato com outros aprisionados no poço, Goreng acredita ter descoberto a lógica do poço, traçando um plano que acredita que irá “desmontar” o mecanismo que mantém aquele terrível mecanismo em funcionamento.

A alegoria do Poço

O original filme do diretor espanhol Galder Gaztelu-Urrutia abre espaço para variadas interpretações, usa a ideia do poço como uma alegoria para falar da sociedade como um todo. Para discutir temas como responsabilidade que cada deveria ter para com o outro e solidariedade (tão ausente)que deve ser preservada, pois as atitudes, sejam elas boas ou más, influenciam de forma significativa a vida dos outros, ainda que muitos não se apercebam disso ou simplesmente prefiram viver em sua bolha olhando apenas para o próprio umbigo. A descida aos níveis mais baixos da plataforma de fato uma descida ao encontro com as atitudes mais vis do ser humano.

Conclusões (Abertas)

Há muitas mensagens nas entrelinhas e outras bem diretas, a dúvida é até que ponto elas alcançarão aqueles a quem se destinam, assim como não encontraram eco nos que estavam aprisionados na “espiral” do poço.

A falta de comunicação entre os níveis ou até mesmo a tentativa de diálogo é algo explícito. A sensação do cada um por si é extremada. Quem está acima está cagando, literalmente, para os que estão embaixo, como se não pudessem cair.

O Poço é um filme sobre escolhas.

Se há uma situação extrema para aqueles que estão nos níveis mais baixos, é porque os que estão nos níveis acima fizeram escolhas baseadas no seu ego. Escolheram se empanturrar de comida sem se importarem com o que acontece com quem está nos níveis mais baixos, mesmo sabendo o que se passa nos níveis inferiores, pois muitos já passaram por lá. E ainda que tenham provado os dissabores da escassez, na situação inversa, optam não apenas por comer o suficiente para se manter, mas para se empanturrar, simplesmente porque podem fazer, porque não há quem possa impedir.

Cena do filme O Poço, da Netflix

CLIQUE PARA TEXTO COM SPOILERS

Ainda em relação à comida, há uma cena que é de grande importância e esclarecedora a respeito do que é servido nos pratos, quando Goreng, antes de entrar no poço é questionado sobre seu prato favorito. Tudo indica que a comida que desce diariamente é a preferida de cada um que ali está, e se cada um comesse apenas a que respondeu ou um prato, haveria comida para todos. O momento da descida de Goreng com Baharat traz algo de A Divina Comédia, de Dante Alighieri, em que ele, em companhia de Virgílio, tem que atravessar o Purgatório e os nove círculos do Inferno, cada um deles representando um pecado: gula, luxúria, avareza, ira, heresia, violência, fraude e traição. Há também uma série de outras simbologias, uma delas é o número de níveis, 333, que multiplicado por 2 dá 666, número geralmente associado ao número da besta. 

+++ Leia a crítica de ‘O Lamento’, de Hong-jin Na

Ainda que o roteiro deixe algumas lacunas a serem preenchidas pelo espectador e algumas pequenas falhas, como o motivo de Goreng ter ido para o poço e de todos os outros (é uma prisão ou uma experiência?), elas não tiram a força dos questionamentos que o filme suscita e não diminuem o impacto das questões abordadas.

E sobre o final, paira uma dúvida se ele é de redenção ou, ao contrário, de total pessimismo.

Assista e encontres os seus significados.


Cartaz do filme espanhol O Poço (EL Hoyo)

FICHA TÉCNICA:

Gênero: Horror, Thriller, Sci-Fi
País: Espanha
Duração: 1h 34min
Direção: Galder Gaztelu-Urrutia
Roteiro: David Desola e Pedro Rivero | História de David Desola
Elenco:  Ivan Massagué, Zorion Eguileor, Antonia San Juan, Emilio Buale e outros.
Data de Lançamento: 20 de março de 2020 (Netflix – Brasil)
Censura: 18 anos
Avaliações: IMDB | Rotten Tomatoes


 

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7 Comments

  1. Eduardo Salvalaio
    27/03/2020

    E que filme. Mesmo que deixe algumas pontas em aberto, não impede de ser um dos filmes mais interessantes dessa época. Pega várias questões tão comuns no mundo atual e na sociedade que vivemos (tal como foi em ‘Parasita’). Espero que influencie muitos diretores daqui pra frente.

    Tenho que ressaltar a atuação de Trimagassi (Zorion Eguileor). Creio que colocá-lo logo no início do filme com aqueles diálogos e todo um clima de suspense em relação a sua verdadeira índole foi um dos trunfos do diretor para que o espectador seguisse adiante.

    Interessante que esse final gere muitas interpretações, pois acredito que o cinema deve sobretudo investigar isso: fazer o espectador pensar, refletir, procurar mais detalhes e, inclusive, até rever o filme.

    Resenha certeira, Luciano. Apontou tópicos interessantes sem entregar nada do filme, atiçando muito a curiosidade no leitor, como todo texto sobre cinema deve ser.

  2. 27/03/2020

    Sim, ótima atuação de Zorion Eguileor, conseguindo transmitir sentimentos diversos nos momentos certos. O filme faz a gente ficar pensando em uma série de detalhes como todo bom filme deve ser, e ter que ver umas duas vezes para melhor entendimento. Obrigado pelo comentário.

  3. 30/03/2020

    Pra quem não entendeu o filme…
    O cara (Goreng) é o Messias, o idoso (Trimagasi) é a lógica, a mulher com câncer (Imoguiri) é a empatia humana , o homem negro (Bahat) é a fé, a chinesa (Miharu) seria a justiça feita com as próprias mãos , a criança é a esperança limpa e pura e pode ser encontrada no fundo do poço .
    Continuando o Messias se sacrificou por todos e mostrou a esperança para quem era da administração ( Deus) , reparem que tudo que vem de cima vem perfeito e os humanos a destroem tudo conforme desce .
    A crítica social que o filme tenta nos passar é que depois que o Messias e o homem negro resolvem descer eles encontram os pecados capitais, a preguiça ( a mulher com travesseiro), a inveja/soberba ( o cara com cabelo branco que fala que é merecedor só por estar em um nível alto 7 ), a ira ( os dois caras brigando , os que mataram a chinesa) , a luxúria ( os caras pelados na piscina ), a ganância ( o velho que estava com o dinheiro), a gula ( o garoto com síndrome de down falando que iria comer a comida que estava dentro da barriga do parceiro), até o materialismo ( onde mostra o cara com violino e não quer largar), enfim a mensagem que o filme passa que mesmo que o mundo tenha pessoas ruins , devemos continuar acreditando que há uma esperança, que no dia em que todos tiverem consciência e empatia, todos comeriam sem precisar prejudicar o próximo.

  4. 30/03/2020

    Olá, Mozart. Há sentido bastante sentido nessa análise. Essa interpretação é tua ou você leu em algum site?

  5. Eliane
    02/04/2020

    O motivo do Goreng ter entrado é pra parar de fumar. Ele fala isso numa das cenas da entrevista pra entrar.

  6. 02/04/2020

    Olá, Eliane. Obrigado pelo seu comentário. Eu entendi que ele entrou para parar de fumar. Mas, considerando que é uma espécie de prisão, passar por uma situação daquelas pra parar de fumar e receber um certificado, achei forçado o motivo de ele ir parar ali.

  7. Ivan
    05/04/2020

    O Mozart estava inspirado quando escreveu este comentário, parece que a mensagem é bastante simples, segue trecho de entrevista com o diretor. “[O filme] não se trata de mudar o mundo, mas de entender e colocar o espectador em vários níveis e ver como eles se comportariam em cada um deles. As pessoas são muito parecidas entre si. É muito importante onde você nasceu – em que país e qual família -, mas somos todos muito parecidos. Dependendo da situação na qual você se encontra, você vai pensar e se comportar de uma maneira diferente. Então, estamos provocando o público para entender os limites de sua própria solidariedade”.

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