‘Nheengatu’, dos Titãs, e o Renascentismo de Pieter Bruegel



Ao utilizarem uma pintura do artista holandês Pieter Bruegel como arte de capa de Nheengatu (2014), seu décimo quarto álbum de estúdio, os Titãs juntaram música, pintura, religião, e também política em um mesmo pacote, aparentemente paradoxal, mas que tem uma explicação.

A capa ficou a cargo do vocalista/tecladista Sergio Britto, que já havia sido responsável pela parte gráfica de Cabeça Dinossauro, álbum de 1986 (que utiliza trabalhos de Leonardo Da Vinci), e Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas (1987), em que as colunas gregas são o destaque.

‘A Torre de Babel pequena’ é uma obra de Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569), considerado um dos artistas mais importantes do Renascentismo flamenco. Muitas de suas obras (pinturas e gravuras) se tornaram ícones dessa escola do século XVI. Suas pintura retratam, em geral, paisagens e cenas do campo. Comparado e citado como influenciado por Jeroen van Aken, mais conhecido como Hieronymus Bosch ou Jeroen Bosch Hertogenbosch (1450 -1516), pintor renascentista do século XV, Bruegel acabou por dar origem ao que viria a ser chamada de “dinastia Bruegel”, com seus descendentes (filhos, netos e bisnetos) levando adiante a inspiração de suas obras.

‘A Torre de Babel’ (1563) é considerada uma das obras das mais importantes do pintor que possui várias outras icônicas dentro do movimento renascentista, incluindo ‘Provérbios Flamencos”, que em 2008 também foi usada como arte de capa de um outro álbum que falaremos na próxima edição desta coluna.

A Torre de Babel, de Pieter Bruegel, o Velho
A Torre de Babel

Bruegel produziu três pinturas sobre o tema bíblico, uma delas foi perdida. As que resistiram ao tempo: ‘De “Kleine” Toren Van Babel’ (ou a “pequena” Torre de Babel, 59,9 × 74,6 cm) e De Toren van Babel (a Torre de Babel, 114 × 155 cm), encontram-se no Museu Boijmans Van Beuningen (em Roterdã, na Holanda) e no Museu de História da Arte (em Viena, Áustria), respectivamente.

Na representação da torre grande é possível ver a construção com uma grande riqueza de detalhes e também o que acontece ao seu redor, incluindo a cidade logo atrás, o mar à frente com os barcos, as pessoas em seus afazeres cotidianos na construção e no seu entorno, e também a imagem do rei fiscalizando a construção e sendo reverenciado pelos trabalhadores. Dentre os detalhes que chamam a atenção na imagem, um deles é que a torre está ligeiramente inclinada para a esquerda, outro é que a torre ao mesmo tempo que está sendo construída parece estar desmoronando, além de inacabada, claro.

Com a pintura, Bruegel buscou ilustrar um dos acontecimentos narrados na Bíblia, especificamente no livro de Gênesis e ocorrido após o dilúvio, quando Deus teria ordenado que as pessoas se dispersassem e povoassem a Terra (Gênesis 9:7), mas não foi obedecido. Em vez disso, liderados por Ninrode (um dos descendentes de Noé), na cidade de Babel, uma das cidades onde a população havia se ajuntado, resolveram construir uma torre tão alta cujos o cume tocasse o céu. Devido a essa desobediência e a ambição de tal empreendimento, Deus fez então que houvesse várias línguas a serem faladas por aquele povo, de modo a não se entenderem e a não concluírem a torre, dispersando-se em grupos para várias outras regiões. Esses acontecimentos são narrados em Genesis 11:1-9.

Estudiosos identificam na pintura da Torre de Babel uma conotação principalmente política e contestatória, representação da ambição dos homens de sua época. Bruegel viveu na Antuérpia do século XVI, uma cidade bastante cosmopolita e das maiores da Europa, além de estratégico centro de comércio. Sendo um grande centro comercial, a cidade tinha muitos comerciantes ricos, o que desagradava a Bruegel, que via toda essa riqueza como algo exagerado, insignificante diante da grandeza de Deus. A pintura seria uma espécie de alerta para as pessoas, significação encontrada em muitas outras pinturas do artista.

A Torre de Babel pequena é a que viria ilustrar a capa de alguns álbuns de música pop, algo um tanto incomum para as pinturas do artista, geralmente utilizadas em discos de música clássica. Ela está, por exemplo, no álbum Converging Conspiracies (1993), da banda de Death Metal Comecon.

A Torre de Babel pequena, de Pieter Bruegel, o Velho
A Torre de Babel “pequena”

Se os Titãs não foram os pioneiros no uso da pintura como ilustração para a capa de seu álbum, foram certeiros no seu uso, casando com a ideia que pretendiam passar com Nheengatu, lançado num momento de certa turbulência política e social no país (que viria a se agravar nos anos seguintes) e numa tentativa de retomada a uma sonoridade mais crua e enérgica, com aproximação do Punk, tanto nas letras quanto nos arranjos, sem deixar de lado ritmos regionais como o Baião e apresentar influências de Ska.

Em termos de proposta, a banda tenta se aproximar do que fizeram nos exitosos álbuns de 1986/87. Já que Sacos Plásticos (2009), o álbum anterior, não foi bem recebido nem por público e nem crítica. Foi o último álbum com a participação do baterista Charles Gavin.

No formato quarteto e com a participação de um baterista convidado (Mario Fabre), Nheengatu apresenta composições de Sergio Britto, Paulo Miklos, Tony Belloto e Branco Mello, e conta com participações especiais de Arnaldo Antunes e Angeli. O álbum traz uma versão pesada para “Canalha”, de Walter Franco, na voz de Branco Mello.

Outro detalhe que merece ser citado é a contracapa do álbum, em que foi utilizada uma outra pintura de Bruegel, ‘O Massacre dos Inocentes’ (1565 – 1566), representando a execução ordenada pelo Rei Herodes de todos os meninos de Belém, narrada na Bíblia no Evangelho de São Mateus. A pintura é cercada de certa controvérsia tanto em relação ao que é visto em cena, quanto a sua originalidade, já que existe uma pintura idêntica à original, feita por Pieter Bruegel, o Jovem; é de sua autoria a arte ‘The Flatters’ (1596), usada no rótulo do disco dos Titãs. Já no encarte, outra pintura de Bruegel (o velho), a pintura ‘A Luta Entre o Carnaval e a Quaresma’ (1559). Todo esse trabalho gráfico é possível de apreciar com mais detalhes na edição vinil de Nheengatu, lançado em capa dupla.

Nheegatu em edição vinil
Nheegatu em edição vinil

Nheengatu é uma palavra indígena que significa língua geral, criada pelos jesuítas no século 17 numa tentativa de unificar os dialetos indígenas em um só. Essa busca de unificação entra em contraste com o que aconteceu com a construção da Torre de Babel. No comunicado à imprensa, a banda explicitou a ideia: “A capa e o título apresentam um paradoxo interessante: uma torre que foi destruída pela falta de entendimento e uma língua que foi criada para favorecer o entendimento. Na tentativa de fazer uma foto instantânea do Brasil atual, as duas ideias se contrapõem bem: uma palavra (e uma linguagem) de entendimento para tentar explicar um mundo de desentendimento”.

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A história da Torre de Babel e a dos Jesuítas são demonstrações claras de que a palavra/linguagem, no fim, é apenas um facilitador para a comunicação, já que o entendimento entre os homens está para muito além e requer muito mais que isso, como nos lembra os Titãs em ‘Nheengatu’.


DOCUMENTÁRIO SOBRE A ARTE DE PIETER BRUEGEL

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