Uma ode a tristeza e a melancolia em ‘Disintegration’, obra-prima do The Cure


Num espaço de dez anos, do lançamento de Three Imaginary Boys (1979) ao de Disintegration (1989), Robert Smith com o seu The Cure lançou oito álbuns de estúdio (incluído o Disintegration), além de uma coletânea de singles (Japanese Whispers). Paralelamente, entre 1983 e 1984, excursionou e gravou um álbum com Siouxsie and the Banshees e outro com o The Glove, projeto em parceria com Severin (baixista dos Banshees).

É engano pensar que Smith estava determinado a manter sua banda sob os holofotes, pois em muitos momentos ele pensou em acabá-la.

Smith sentia-se mais “confortável” como guitarrista dos Banshees do que como líder do The Cure. Com sua banda principal, era o peso e a responsabilidade de carregar a banda, lidar com gravadora, saídas e entradas de integrantes, e o clima barra pesada que havia se instalado ao redor da banda desde Faith (1981) até Pornography (1982), com a banda sendo reduzida a ele e Tolhurst, após a turnê.

Mas em 1988, época em que Smith começou a pensar no próximo álbum, muitas coisas tinham mudado. The Head on the Door (1985) e Kiss Me Kiss Me Kiss Me (1987), junto com a coletânea Standing on a Beach (1986) haviam catapultado o The Cure a um patamar jamais imaginado pelo próprio Smith, exacerbando a “curemania” e levando a banda às vendagens de milhões de cópias. O Cure havia conquistado o público dos EUA e de boa parte do mundo. Eram os queridinhos da MTV, com seus videoclipes, produzidos por Tim Pope em alta rotação. Álbuns de ouro, de platina se tornaram comuns na rotina da banda de Crowley. Os shows agora eram não mais para alguns milhares de pessoas, mas para as dezenas de milhares.

Como músicos, a banda havia se estabelecido com um núcleo central desde então com: Smith, Gallup, Thompson, Boris e Tolhurst.

Finalmente, tudo parecia caminhar bem com o The Cure. Smith chegou a afirmar que “Tudo que eu tinha sonhado em fazer estava dando frutos. De repente percebi que havia um número infinito de coisas que poderia fazer com a banda”.

Apesar de tudo isso Smith não se sentia confortável com a proporção gigantesca que a banda havia alcançado, com o status de megabanda; não estava à vontade com os trinta anos se aproximando; sentia que deveria lançar um álbum que “definisse a trajetória do The Cure”, mesmo que fosse o último. E, diante das pressões, voltou a usar drogas alucinógenas.

Dentro desse contexto, é praticamente obrigado a demitir Tolhurst, devido a sérios problemas com álcool e de relacionamento com os outros membros. A banda, que até então funcionava como um sexteto, tem a efetivação do tecladista Roger O’Donnell (Psychedellic Furs), que será responsável pelo intenso trabalho de teclados do novo álbum.

Já perto de seu lançamento, os executivos da gravadora reuniram-se para a audição e não ficaram nada satisfeitos com o que ouviram. A percepção foi de que Smith estava cometendo “suicídio comercial”. Apesar do exagero, havia certa razão na preocupação, dado contexto musical da época, dominado pela dance music e pelas raves. Somado a isso, foi graças aos climas menos “carregados” dos álbuns anteriores que o The Cure havia alargado bastante seu público.

Entre obra-prima e suicídio comercial, o tempo tratou de mostrar que Smith estava certo e conhecia seu público mais do que qualquer um. Disintegration não só manteve o status do The Cure intacto como conseguiu ampliá-lo ainda mais. “Lullaby”, o primeiro single do álbum, alcançou a melhor posição para a banda nas paradas até então, e o álbum vendeu mais de um milhão de cópias em pouco tempo de lançado. O tamanho que o The Cure havia chegado ficou mais evidente com a longa e desgastante turnê “The Prayer Tour”, que quase dissolveu a banda.

Disintegration foi gravado entre dezembro de 88 e fevereiro de 89, contando com a produção, mais uma vez de Dave Allen.

Embora muitos vejam o álbum como uma ruptura em relação aos seus antecessores, olhando de perto, muito do que se ouve ali já havia, de alguma forma, sido apresentado tanto em The Head on the Door quanto em Kiss Me Kiss Me Kiss Me (1987), não no todo, mas em partes, em faixas como “Sinking” e “One More Time”, com longos instrumentais e texturas de teclados densos. A diferença é que Smith resolveu em Disintegration tornar esse lado mais denso o foco principal de todo o disco.

A ideia era retomar a fase mais claustrofóbica da banda, especificamente em Pornography, que esfacelou a banda psicologicamente. A diferença é que para o novo álbum ele estava cercado de mais músicos, inclusive tecnicamente melhores. A despeito de seu humor difícil à época, o próprio Smith estava com domínio maior de seu instrumento. Mas foi a presença de O’Donnell um dos pontos chaves que permitiu que o álbum soasse tão gélido, graças as camadas de teclados criando uma grande massa espessa recobrindo boa parte das canções e sendo praticamente o centro das atenções em boa parte do álbum, juntamente com o baixo em primeiro plano de Gallup.

Certamente que não é um álbum fácil, não atrai numa primeira audição, pelo contrário, é como se a banda tivesse construído em torno de si uma grande e impenetrável muralha , requerendo do ouvinte muitas audições. A abertura quase sinfônica com “Playsong” e seus versos sobre escuridão, frio, velhice e o fim do mundo fornecem uma antevisão do que está por vir ao longo das faixas.

Para quem se acostumou com aquela banda de guitarras, o início pode assustar e até afastar num primeiro momento. “Pictures of You” retorna o The Cure de guitarras num belo diálogo entre o baixo de Gallup, a guitarra de Smith e ainda uma segunda guitarra tocando uma terceira melodia de fundo. Enquanto sintetizadores fazem uma gama de efeitos de fundo e o teclado segue mais discreto em seu papel de dar certa densidade, Smith canta sobre arrependimento enquanto olha pra fotos e avalia decisões que poderiam ter sido diferentes.

“Plainsong” retoma os ambientes densos de teclados climáticos com batidas tribais e o baixo acentuado de Gallup. Aqui percebe-se o quão melodioso o The Cure se tornou em Disintegration, com as guitarras límpidas fazendo progressões de notas dedilhadas. “Love Song”, composta especialmente para Mary, foge ao padrão do disco e marca uma quebra nos climas quase sufocantes, posicionada de forma a dar o ouvinte um tempo para o respiro depois das sinfonia densa de “Plainsong” e “Closedown” e da melancólica “Pictures of You”.

Disintegration é um álbum longo e de longos instrumentais introdutórios, algo que a banda havia feito em Kiss Me Kiss Me Kiss Me (“The Kiss”), e apresenta , até então, a canção mais longa já composta pelo The Cure, a hipnótica e invernal “The Same Deep Water As You” com seus barulhos de chuva e trovões. Na versão CD ele se torna maior ainda, com a inclusão das faixas “Last Dance” e “Homesick”. O ouvinte se vê conduzido por uma longa viagem pelos pesadelos de Smith expostos em suas letras, e “Lullaby”, apesar do clima sedutor, retrata justamente isso: uma canção de ninar transformada em pesadelo: “E sinto como se estivesse sendo comido por cem milhões de trêmulos buracos peludos”. O clip de Tim Pope conseguiu capturar de forma precisa o conceito da música. Tanto que ganhou o prêmio de melhor de 1989.

“Fascination Street” retoma o diálogo entre o baixo de linhas circulares (um dos mais emblemáticos criados por Gallup) e as guitarras, agora recheadas de efeitos viajados. O lado lírico de Smith, que se aproxima do quase poético está expresso nos versos como: “Because I feel it all fading and paling and I’m begging to drag you down with me to kick the last nail in”. “Prayers for Rain” volta ao lado mais sinfônico do álbum enquanto um Smith desesperado desfia versos sobre sensações que parecem saídas de um pesadelo induzido por alucinógenos: “Você me despedaça, Seu poder sobre mim, Um agarrão em mim, Um domínio tão possessivo que mata”.

Se Smith exigiu bastante de seus companheiros de banda, também impôs a si alguns desafios, principalmente diversificando o seu modo de cantar, indo do vocal sussurrado, ao desesperado, melancólico e o resfolegante, na épica faixa que dá nome ao álbum. De forma quase desesperada ele vai entoando os versos de uma forma sobreposta como se estivesse prestes a sufocar com os versos, algo que nem sempre conseguiu reproduzir ao vivo, sobre um arranjo de base das mais simples e repetitivas do álbum.

O encerramento com “Untitled” é calmo, com direito a sons de acordeon. Uma canção cujo tom é mesmo de encerramento, com o vocal de Smith cantado de forma sóbria. Dentre as várias canções cuja letra cita a questão do tempo, obsessão do vocalista na época, essa é uma delas. Mas a letra fala também sobre arrependimentos, pesadelos, falta de esperança, finalizando com alguns dos versos mais pesados do álbum: “Sem esperança de lutar contra a futilidade do demônio, Sentindo o monstro escalar mais profundamente dentro de mim, Sentindo-o roer esfomeadamente todo o meu coração, Eu nunca vou perder esta dor, Nunca vou sonhar com você outra vez”.

+++ Na coluna DISCOS & CAPAS, leia sobre ‘Three Imaginary Boys’, do The Cure

Com Disintegration, Smith afirmou ter percebido que, apesar dos seus esforços, o The Cure tinha se tornado tudo aquilo que eles não queriam que fossem: uma banda de estádios. Foi o preço por ter construído uma discografia respeitável ao longo de uma década, e também pela criação de sua obra-prima antes de completar os trinta anos. O disco marca uma divisão clara na discografia do The Cure, um ápice que a banda não conseguiu alcançar em nenhum dos álbuns posteriores, e apesar de seus quase trinta anos, “envelheceu saudável”, um clássico.

the cure - disintegration

FICHA TÉCNICA E MAIS INFORMAÇÕES:

ANO: 1989
GRAVADORA: Fiction Records
FAIXAS: 12
DURAÇÃO: 71:45
PRODUTOR: David M. Allen, Robert Smith
DESTAQUES: “Pictures of You”, “Lullaby”, “Love Song”, “Fascination Street”
PARA FÃS DE: Pós-Punk, Rock Oitentista, canções melancólicas

 

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6 Comments

  1. Pedro
    16/01/2019

    Considero esse um baita álbum do The Cure, acho que não é meu favorito, talvez prefira o Pornography ou o Faith, mas mesmo assim é um grande álbum. É muito hit atrás de hit e tem muitos elementos interessantes, pensar que esse disco começa com Plainsong e termina com a Untitled.
    Parabéns pela postagem, continuarei acompanhando o site.

  2. 16/01/2019

    Olá, Pedro. Obrigado pelo seu comentário. Tanto “Faith” quanto “Pornography” são dois grandes álbuns do The Cure, gosto muito dos dois também. Penso que “Disintegration” é uma versão melhor acabada, e menos depressiva, de ambos. Esteja sempre à vontade aqui no site, o espaço é nosso.

  3. 17/01/2019

    Um dos melhores álbuns da história rock. De fato, uma obra-prima!

  4. 18/01/2019

    Com certeza, Artur. Obrigado pelo comentário, esteja à vontade aqui no site.

  5. eduardo
    18/12/2022

    Ola, como chama a musica que tem uma longa parte inicial isntrumental…? obrigado

  6. 22/12/2022

    Bem, tem várias que os instrumentais iniciais são longos: “Plainsong”, “Fascination Street” e “Disintegraton”.

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