“O Homem é um ser dialético – desenvolve-se a partir de antagonismo e contradições. Se o homem não travasse lutas internas e externas, se não tivesse problemas na vida, não haveria drama e, provavelmente, ainda estaríamos no Paraíso. Portanto, o conflito é substancial ao indivíduo, o espelho da sua vida na relação com os outros, com o mundo e com ele mesmo’”, refletiu Doc Comparato em Da Criação ao Roteiro (2000).
A passagem do livro de Doc foi a primeira “teoria” que me veio à cabeça enquanto comecei a refletir sobre Os Filhos dos Outros, principalmente pensando em como a diretora Rebecca Zlotowski trabalha seus arcos narrativos, um dos aspectos que mais me chamaram atenção na produção.
No filme, Rachel (Virginie Efira), aos seus 40 anos, apaixona-se por Ali (Roschdy Zem) recentemente divorciado e pai de uma menina de quatro anos. Ao começar a se relacionar com ele, ela anseia por ter um filho, ao mesmo tempo que começa a se tornar próxima da filha de seu novo parceiro. Essa breve sinopse nos permite adentrar mais diretamente na projeção da narrativa, que segue uma estrutura ainda bastante tradicional, baseada em três pontos chave (algo acontece, algo precisa ser feito, algo se faz). No entanto, a diretora adere a um estilo onde esses pontos se tornam quase nuances prestes a se mesclarem.
Muito dessa impressão, que enriquece o longa, vem do primeiro longo ato inicial de cinquenta minutos. Nesse ato, já são introduzidos conflitos, como as tentativas frustradas de gravidez e a relutância de Sofia em aceitar Rachel como madrasta. Ao mesmo tempo, esse ato prepara o terreno para a grande virada no segundo, onde Zlotowski introduz um novo obstáculo na vida de Rachel. Nesse sentido, é interessante observar como o filme se desenvolve dentro de uma lógica em que a construção de personagens e a forma como Rachel lida com seu desejo de ter um filho são privilegiadas, já que compreender essa personagem e seu relacionamento caloroso e seguro com Ali é o que dá sentido ao próximo conflito.
No entanto, é importante ressaltar que esse próximo conflito, que envolve a separação e a distância de sua enteada, não está apenas ligado a questões amorosas, mas também aborda temas existenciais e individualistas, além de questões de gênero como o papel da mulher na configuração familiar e a própria maternidade. Isso reforça minha ideia inicial de que o filme não se concentra em um único tópico ou na dramatização de um único conflito, mas possui uma complexa rede de antagonismos que se entrelaçam ao longo da trama.
Quando isso é colocado em mente (o que pode demorar a acontecer a depender da perspectiva do espectador), os acontecimentos que soam quase como corriqueiros demonstram sua riqueza narrativa. Nada é ‘‘parado’’, o filme não demora a “engatar”, não existem cenas que poderiam ser eliminadas ou enxugadas, pois tudo faz parte de um emaranhado de conflitos, algo que Doc também destacou ao falar sobre a inacessibilidade da paz, sobre como, em nossas vidas, continuamente surgem questões e disputas, e não é necessário que uma questão seja resolvida para que outra surja.
+++ Leia s crítica de ‘Mato Seco em Chamas’, de Joana Pimenta e Adirley Queirós
Dessa forma, Os Filhos dos Outros acompanha a vida de Rachel em um capítulo muito específico. Podemos perceber que existiu uma mulher antes dela conhecer Ali, afinal, ainda a vemos lidando com questões no trabalho, com seu ex-marido, etc. No entanto, é especialmente evidente pelo modo como o filme termina, com Rachel correndo pelas ruas ao som de “Águas de Março”, que sua jornada não se encerra quando os créditos sobem. Um novo capítulo está prestes a começar em sua vida e novos desafios surgirão para dar continuidade à sua jornada como ser humano, à sua experiência de viver.
CLIQUE PARA ASSISTIR AO TRAILER
FICHA TÉCNICA E MAIS INFORMAÇÕES:
TÍTULO ORIGINAL: Les Enfants des Autres
ANO: 2022
GÊNERO: Drama, Romance
PAÍS: França
IDIOMA: Francês, Hebraico
DURAÇÃO: 1:43 h
CLASSIFICAÇÃO: 16 anos
DIREÇÃO: Rebecca Zlotowski
ROTEIRO: Rebecca Zlotowski
ELENCO: Virginie Efira, Roschdy Zem, Chiara Mastroianni, Callie Ferreira-Goncalves e outros
AVALIAÇÕES: IMDB
No Comment