E o Rock Alternativo nunca mais foi o mesmo após ‘Daydream Nation’


Foto Sonic Youth, 1988

Testemunhas oculares da cena No Wave nova-iorquina, o Sonic Youth passou anos e álbuns da década de 80 lapidando sua sonoridade. Daydream Nation foi o primeiro álbum da banda a conseguir alguma posição nas paradas. Com ele a banda encerrou a década no ápice, derrubou as fronteiras da cena underground, abrindo as portas para uma grande gravadora.

Em 81 parecia que o Pós-Punk seria a mola propulsora para o futuro da banda, vide as gordas linhas de baixo e batidas tribais preponderantes no EP Sonic Youth, lançado pelo selo Neutral Records, de propriedade de Glenn Branca. Branca teve papel fundamental na história do grupo, Lee Ranaldo e Thurston Moore, os guitarristas do Sonic Youth, participaram da chamada “orquestra de guitarras” do músico vanguardista. Essa experiência influenciou de forma definitiva na maneira como os dois músicos se relacionam com as seis cordas.

Os álbuns Confusion is Sex (1983), Bad Moon Rising (1985), Evol (1986) e o EP Kill Yr Idols (1983) foram trabalhos de total experimentalismo. As guitarras, aos poucos, tomaram o primeiro plano, com o noise e as dissonâncias reinando de forma absoluta. Com sua música de difícil assimilação e arranjos de estruturas abstratas, a banda se posicionava na vanguarda da música nova-iorquina, o Avant-Garde ou Art-Rock.

Há quase um consenso de que Sister (1987) foi o álbum em que a banda finalmente equilibrou as fórmulas musicais com as quais vinham trabalhando já há alguns anos, com Moore e Kim cantando bem mais. Haviam finalmente fixado um baterista, Steve Shelley, que entrou em Bad Moon Rising. Ainda longe de convencionalismos e formatos comuns da música pop e repleto de experimentações, Sister marca o fechamento de um ciclo. Daydream Nation, lançado no ano seguinte, inicia o segundo ciclo da banda.

Uma rápida busca nos álbuns lançados naquele ano mostrará que Daydream Nation teve muitos concorrentes ou aliados à altura na música alternativa americana. Bandas mais novas lançariam seu primeiro álbum: Mudhoney (Superfuzz Bigmuff) e Pixies (Surfer Rosa), juntando-se a veteranos de longa data na cena: R.E.M. (Green) Dinosaur Jr. (Bug) e Husker Du. Todas fundamentais para o que viria a acontecer na cena alternativa americana nos anos 90.

Para entender Daydream Nation em termos de conceitos e ideias, há que se entender o cenário político e social reinante não só nos Estados Unidos como também em Nova Iorque. O ano de 1988 era o penúltimo da “Era Reagan”, marcada pela Guerra Fria, pelo Projeto Guerra nas estrelas, pelo crescimento do poderio político Republicano e o surgimento da “Doutrina Reagan”. Em Nova Iorque, cidade natal da banda, a violência (inclusive racial), o consumo de crack, a corrupção grassavam. A chamada Guerra às Drogas mandaria para a prisão cerca de 900 mil pessoas, em sua maioria, negros.

Internamente, a banda não estava satisfeita com o trabalho de divulgação feito pela SST, gravadora que estavam sediados. Após dois álbuns pelo selo, resolveram romper e lançar o novo trabalho pela Enigma. Para a gravação, uma mudança radical, com a presença do produtor Nick Sansano. Sansano havia produzido o álbum It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back (1988), do Public Enemy, e a banda havia gostado muito do resultado, o que renderia também uma participação de Chucky D em Goo (1990), em “Kool Thing”.

Gravado no Greene St. Recording, em Nova Iorque, entre julho e agosto de 1988, ao custo de mil dólares por dia – as gravações custaram trinta mil dólares no total -, Daydream Nation foi descrito por Thurston como “nosso primeiro álbum não econômico”.

Todos os movimentos da banda no processo de criação direcionavam em um só sentido: fazer seu álbum mais audacioso até então. Essa audácia fica clara também no formato do disco, um álbum duplo com setenta minutos de duração, sendo puxado por um single de sete minutos que surge como uma espécie de hino para o “mundo alternativo”, conclamado a se unir, com J Mascis (Dinosaur Jr) sendo o presidente de um EUA em uma realidade alternativa. “Teenage Riot” tornou-se um clássico instantâneo com seus repetitivos riffs de guitarras com afinação fora do padrão (algo comum nas canções da banda) e sua energia contagiante conduzida pelas batidas agitadas de Steve Shelley. Até então, a canção mais “reta” da banda, demonstrando uma outra proposta sonora.

“Silver Rocket”, segunda faixa e também segundo single do álbum, mostra influências de Hardcore com as guitarras fazendo no intermezzo o típico inferninho noise que a banda se acostumou se esbaldar, ou seja, o lado experimental que desde sempre foi a tônica do grupo.

O Sonic Youth estava disposto a romper barreiras com Daydream Nation. A “Nação Sonâmbula” do título surge como provocação ao estado de apatia em que se encontrava os Estados Unidos na época. Esse posicionamento político se tornaria mais intenso em “Dirty” (1992).

Ao mesmo tempo, seguiam trazendo para a sua música outras formas de arte, a capa e contracapa usam uma pintura do alemão Gerhard Richter chamada Kerze (“Candle”). No rótulo de cada lado do vinil, símbolos para representar cada um dos integrantes, numa alusão ao que o Led Zeppelin fez em seu álbum Led Zeppelin IV.

É uma obra que abarca uma multiplicidade de referências, inclusive nas letras e títulos das canções, “The Sprawl” toma emprestado seu título da trilogia de mesmo nome do escritor William Gibson. A faixa é uma longa suíte de mais de sete minutos, embalada por riffs envolventes de guitarra e tem, novamente, um belo trabalho percussivo de Shelley e seus momentos de noise e alguma melodia. Kim canta frases diversas e no refrão repete: “Venha para a loja, você pode comprar mais, mais mais e mais”. Esse formato de suíte reaparece em “Total Trash” e reaparece de forma mais extensa em “Trilogy” dividida em três canções distintas.

A banda volta ao ritmo acelerado do Hardcore em “Cross the Breeze”, que segue mais ou menos a tônica de “Silver Rocket”, com mudanças diversas no arranjo e as guitarras fazendo um diálogo intenso, como se estivessem cada uma buscando ser mais protagonista. Essa profusão de riffs de guitarra, com o baixo às vezes usando distorção e se juntando ao noise ou mesmo inaudível, rendeu o devido título de guitar-band ao grupo, termo que se tornou bastante popular aqui no Brasil para designar bandas que exploravam as guitarras de forma efusiva, e fez escola.

Lee Ranaldo assume os vocais em “Eric’s Trip”, cuja letra é baseada num monólogo do filme “Chelsea Girls”, de Andy Wahrol. Aqui o grupo adiciona efeitos de Wah-Wah para modificar o timbre das guitarras, que seguem raivosas, e até sons do pandeiro meia lua. Num dos trechos da letra Ranaldo berra: “This is Eric’s trip . We’ve all come to watch him slip. He’s slipping all the way to Texas. Can you dig it?”. E volta na exasperante “Hey Joni”, um trocadilho para “Hey Joey” e a cantora Joni Mitchel. “Providence” surge como uma espécie de pausa no ritmo alucinado das guitarras, com Thurston tocando uma melodia simples ao piano que vai aos poucos sendo soterrado por uma onda de white noise enquanto a voz de Mike Watt surge numa ligação telefônica.

A sequência do álbum é um turbilhão incessante pelas paredes de barulho, o senso melódico da abertura de “Candle” sugere falsamente uma mudança nos rumos, mas segue o esporro sonoro, com Shelley utilizando a famosa motorik beat, tão utilizada no Krautrock, que dá uma sensação incrível de propulsão pra frente. “Rain King” é um mergulho em riffs com tons sombrios e estar sendo conduzido por algum veículo em alta velocidade, com a voz de Ranaldo tentando emergir através das ondas de barulho que jorram aos borbotões. “Kissability” é Kim soando etérea em meio a batidas tribais e guitarras mais brandas com o noise em suspensão e pronto para surgir como uma tempestade derrubando tudo. “Trilogy” é uma suíte de três partes que soa como uma longa jam dividida em três partes, duas cantadas por Thurston e uma por Kim.

Toda a pretensão da banda para Daydream Nation teria sido inócua se o conjunto de canções que a banda esculpiu não estivessem a altura dessas pretensões. O quarteto permitiu que se expandissem em sua música outras referências que até então estavam “intimidadas” tanto pelas influências No Wave quanto pelo Avant-Garde da cena nova-iorquina. Surgem então com mais intensidade a selvageria do Rock de garagem de bandas setentistas como MC5 e The Stooges, o noise mais intenso do Velvet Undergound, as influências do Hardcore e até do Rock clássico, tudo isso em canções com formato mais “acessível” que antes. Fácil? Não! Menos difícil que qualquer de seus antecessores.

+++ Na coluna ESPECIAIS, leia sobre ‘Ascension’, de Glenn Branca

Seu impacto na cena alternativa americana foi enorme não ficou confinado àquele país. Atravessou o oceano e atingiu de forma certeira muitos jovens na Europa e na América do Sul, que se sentiriam impelidos a pegar uma guitarra, formar uma banda e fazer barulho também, como se o barulho fosse sua redenção, sua rebeldia, sua forma de dizer “Foda-se” aos padrões e aos convencionalismos. É o “motim adolescente”, expresso na letra de “Teenage Riot”.

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FICHA TÉCNICA E MAIS INFORMAÇÕES:

ANO: 1988
GRAVADORA: Enigma
FAIXAS: 12
DURAÇÃO: 70:47
PRODUTOR: Nick Sansano, Sonic Youth
DESTAQUES: “Teenage Riot”, “Silver Rocket”, “Kissability”
PARA FÃS DE: Rock Alternativo, No-Wave, Guitar-Bands, Glenn Branca

 

 

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2 Comments

  1. Daniel Rezende
    21/03/2021

    Texto perfeito para um disco clássico! Parabéns!

  2. 22/03/2021

    Obrigado pelo comentário e pelo elogio, Daniel. Abraço.

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