Goreng e Trimagasi – Nível 48
Um homem (Goreng) acorda dentro do que parece ser uma profunda prisão vertical de concreto (o poço) e é saudado por outro de mais idade (Trimagassi), que entre outras coisas lhe informa que estão no nível 48, e que isso não é de todo ruim, pois quanto menor o número melhor. Enquanto conversam, uma luz se acende e uma plataforma vem descendo pelo meio da cela, parando por alguns instantes no nível em que estão, e trazendo pratos de comida diversos com os restos do que sobrou nos níveis superiores, descendo logo em seguida.
O funcionamento do poço
Como já dito, o poço é dividido em vários níveis. A comida é colocada no nível zero e vai descendo. Aqueles que estão nos primeiros níveis tem comida farta e tendem a se empanturrar o máximo que podem, pouco se importando se irá sobrar para os que estão nos níveis mais baixos. Alguns são até perversos, desperdiçam e cospem na comida como forma de se vingarem daqueles que estão abaixo e que em um outro momento possivelmente estavam em níveis acima. Isso porque cada dupla permanece num nível por apenas um mês.
Em algumas cenas e através de diálogos, ficamos sabendo que por detrás da estrutura existe uma Administração e regras, uma delas é que a comida só pode ser consumida enquanto a “mesa” encontra-se no nível da dupla, caso peguem algo para ser consumido posteriormente, podem ser torturados por frio ou calor.
Outra regra é que cada pessoa colocada lá pode escolher algum objeto para levar consigo.
Goreng e Trimagasi – Nível 171
Com a mudança da dupla, que até havia construído uma relação de amizade, para um nível mais baixo, o filme adquire novos contornos. Se no primeiro momento a narrativa o aproximava de um Drama, um filme sobre prisão com toques Sci-Fi, o segundo ato é em direção ao Horror em sua forma mais assustadora, aquele em que é provocado pelas próprias pessoas ao redor.
No nível 171, onde a comida não chega e o instinto de sobrevivência fala mais alto, O Poço conduz por uma jornada para baixo, onde as atitudes mais vis e sanguinárias podem ser justificadas pelo dilema: matar ou morrer. E é nessa hora que se percebe o quanto a escolha do objeto para levar junto consigo pode ser determinante para a sobrevivência naquele espaço hostil.
Nesse segundo momento, e também no caminho para o ato final, O Poço explora a violência de forma brutal, podendo chocar os menos afeitos.
O aprendizado no poço
Com o passar do tempo e o contato com outros aprisionados no poço, Goreng acredita ter descoberto a lógica do poço, traçando um plano que acredita que irá “desmontar” o mecanismo que mantém aquele terrível mecanismo em funcionamento.
A alegoria do Poço
O original filme do diretor espanhol Galder Gaztelu-Urrutia abre espaço para variadas interpretações, usa a ideia do poço como uma alegoria para falar da sociedade como um todo. Para discutir temas como responsabilidade que cada deveria ter para com o outro e solidariedade (tão ausente)que deve ser preservada, pois as atitudes, sejam elas boas ou más, influenciam de forma significativa a vida dos outros, ainda que muitos não se apercebam disso ou simplesmente prefiram viver em sua bolha olhando apenas para o próprio umbigo. A descida aos níveis mais baixos da plataforma de fato uma descida ao encontro com as atitudes mais vis do ser humano.
Conclusões (Abertas)
Há muitas mensagens nas entrelinhas e outras bem diretas, a dúvida é até que ponto elas alcançarão aqueles a quem se destinam, assim como não encontraram eco nos que estavam aprisionados na “espiral” do poço.
A falta de comunicação entre os níveis ou até mesmo a tentativa de diálogo é algo explícito. A sensação do cada um por si é extremada. Quem está acima está cagando, literalmente, para os que estão embaixo, como se não pudessem cair.
O Poço é um filme sobre escolhas.
Se há uma situação extrema para aqueles que estão nos níveis mais baixos, é porque os que estão nos níveis acima fizeram escolhas baseadas no seu ego. Escolheram se empanturrar de comida sem se importarem com o que acontece com quem está nos níveis mais baixos, mesmo sabendo o que se passa nos níveis inferiores, pois muitos já passaram por lá. E ainda que tenham provado os dissabores da escassez, na situação inversa, optam não apenas por comer o suficiente para se manter, mas para se empanturrar, simplesmente porque podem fazer, porque não há quem possa impedir.
CLIQUE PARA TEXTO COM SPOILERS
+++ Leia a crítica de ‘O Lamento’, de Hong-jin Na
Ainda que o roteiro deixe algumas lacunas a serem preenchidas pelo espectador e algumas pequenas falhas, como o motivo de Goreng ter ido para o poço e de todos os outros (é uma prisão ou uma experiência?), elas não tiram a força dos questionamentos que o filme suscita e não diminuem o impacto das questões abordadas.
E sobre o final, paira uma dúvida se ele é de redenção ou, ao contrário, de total pessimismo.
Assista e encontres os seus significados.
FICHA TÉCNICA:
Gênero: Horror, Thriller, Sci-Fi
País: Espanha
Duração: 1h 34min
Direção: Galder Gaztelu-Urrutia
Roteiro: David Desola e Pedro Rivero | História de David Desola
Elenco: Ivan Massagué, Zorion Eguileor, Antonia San Juan, Emilio Buale e outros.
Data de Lançamento: 20 de março de 2020 (Netflix – Brasil)
Censura: 18 anos
Avaliações: IMDB | Rotten Tomatoes
E que filme. Mesmo que deixe algumas pontas em aberto, não impede de ser um dos filmes mais interessantes dessa época. Pega várias questões tão comuns no mundo atual e na sociedade que vivemos (tal como foi em ‘Parasita’). Espero que influencie muitos diretores daqui pra frente.
Tenho que ressaltar a atuação de Trimagassi (Zorion Eguileor). Creio que colocá-lo logo no início do filme com aqueles diálogos e todo um clima de suspense em relação a sua verdadeira índole foi um dos trunfos do diretor para que o espectador seguisse adiante.
Interessante que esse final gere muitas interpretações, pois acredito que o cinema deve sobretudo investigar isso: fazer o espectador pensar, refletir, procurar mais detalhes e, inclusive, até rever o filme.
Resenha certeira, Luciano. Apontou tópicos interessantes sem entregar nada do filme, atiçando muito a curiosidade no leitor, como todo texto sobre cinema deve ser.
Sim, ótima atuação de Zorion Eguileor, conseguindo transmitir sentimentos diversos nos momentos certos. O filme faz a gente ficar pensando em uma série de detalhes como todo bom filme deve ser, e ter que ver umas duas vezes para melhor entendimento. Obrigado pelo comentário.
Pra quem não entendeu o filme…
O cara (Goreng) é o Messias, o idoso (Trimagasi) é a lógica, a mulher com câncer (Imoguiri) é a empatia humana , o homem negro (Bahat) é a fé, a chinesa (Miharu) seria a justiça feita com as próprias mãos , a criança é a esperança limpa e pura e pode ser encontrada no fundo do poço .
Continuando o Messias se sacrificou por todos e mostrou a esperança para quem era da administração ( Deus) , reparem que tudo que vem de cima vem perfeito e os humanos a destroem tudo conforme desce .
A crítica social que o filme tenta nos passar é que depois que o Messias e o homem negro resolvem descer eles encontram os pecados capitais, a preguiça ( a mulher com travesseiro), a inveja/soberba ( o cara com cabelo branco que fala que é merecedor só por estar em um nível alto 7 ), a ira ( os dois caras brigando , os que mataram a chinesa) , a luxúria ( os caras pelados na piscina ), a ganância ( o velho que estava com o dinheiro), a gula ( o garoto com síndrome de down falando que iria comer a comida que estava dentro da barriga do parceiro), até o materialismo ( onde mostra o cara com violino e não quer largar), enfim a mensagem que o filme passa que mesmo que o mundo tenha pessoas ruins , devemos continuar acreditando que há uma esperança, que no dia em que todos tiverem consciência e empatia, todos comeriam sem precisar prejudicar o próximo.
Olá, Mozart. Há sentido bastante sentido nessa análise. Essa interpretação é tua ou você leu em algum site?
O motivo do Goreng ter entrado é pra parar de fumar. Ele fala isso numa das cenas da entrevista pra entrar.
Olá, Eliane. Obrigado pelo seu comentário. Eu entendi que ele entrou para parar de fumar. Mas, considerando que é uma espécie de prisão, passar por uma situação daquelas pra parar de fumar e receber um certificado, achei forçado o motivo de ele ir parar ali.
O Mozart estava inspirado quando escreveu este comentário, parece que a mensagem é bastante simples, segue trecho de entrevista com o diretor. “[O filme] não se trata de mudar o mundo, mas de entender e colocar o espectador em vários níveis e ver como eles se comportariam em cada um deles. As pessoas são muito parecidas entre si. É muito importante onde você nasceu – em que país e qual família -, mas somos todos muito parecidos. Dependendo da situação na qual você se encontra, você vai pensar e se comportar de uma maneira diferente. Então, estamos provocando o público para entender os limites de sua própria solidariedade”.