‘Tár’ aborda cultura do cancelamento e a glória da Arte apesar do artista


Cate Blanchet em Tár (2022)

A genialidade pode vir com um grande peso. É o que testemunha Tár (2022), retorno de Todd Field à cadeira de direção após um hiato de 16 anos. Elegante e metódico, o filme é agora mais relevante do que nunca.

Vinte anos atrás, Roman Polanski ganhou seu Oscar de Melhor Direção por O Pianista (2002). Antes disso, em 1977, o diretor polaco fora preso pelo abuso sexual de uma garota de 13 anos que havia sido modelo de um de seus ensaios para a Revista Vogue. Ele se declarou culpado e foi solto por fiança. No ano seguinte, sob a ameaça de uma nova prisão, Polanski fugiu dos Estados Unidos para a Europa, e não colocou o pé em solo americano desde então. Mesmo assim, a Academia decidiu honrá-lo com a maior premiação que um artista do cinema pode receber.

É fato que O Pianista, assim como outras de suas obras, como O Bebê de Rosemary (1968) e Chinatown (1974), são filmes dignos da aclamação que recebem; porém, fazer vista grossa para quem a pessoa atrás da câmera é e ao que fez em seu passado, concedendo um reconhecimento tão grandioso, é algo inaceitável, que não apenas desrespeita a(s) vítima(s), como contribui para a perpetuação de tais condutas criminosas na Indústria.

Harvey Weinstein, Bill Cosby, Kevin Spacey e Woody Allen são apenas alguns nomes de uma lista que, infelizmente, é muito extensa. Há quem acredite que qualquer obra com envolvimento dos supracitados deva ser automaticamente descartada e esquecida. Em outra mão, muitas pessoas argumentam que a arte deve ser separada do artista, e é isso que Todd Field defende eficientemente em Tár.

Aqui, seu roteiro extremamente denso, acompanha Lydia Tár, uma regente em preparação para uma nova performance ao vivo, ao mesmo tempo que enfrenta diversos conflitos pessoais que a levam progressivamente a sua ruína, simultaneamente, mental e profissional. Esse roteiro incessante provê a tensão perfeita experenciada ao longo dos 160 minutos da obra, e serve de prova para o talento incomparável de Cate Blanchett, que mostra, em todos os sentidos, porque é realmente uma estrela do cinema.

O roteiro, que assume a forma de uma falsa cinebiografia, poderia facilmente cair no atraente erro de ser apenas “bem escrito”. Porém, isso não foi suficiente para o autor, que usou seu texto para levantar questões extremamente importantes e profundas desde a primeira cena. É a partir desta cena, também, que fica claro que esse não é um filme que se preocupa com ser acessível ao grande público, aquele sem conhecimento prévio aprofundado sobre música clássica.

Beirando o elitismo, essa decisão funciona muito bem como uma forma de desarmar o espectador, facilitando a aceitação de uma série de eventos que poderiam ser questionáveis em outra realidade, visto que o filme não gasta muito tempo em sua introdução, deixando o espectador cair de paraquedas na trama.

Cate Blanchett e Zethphan D. Smith-Gneist em Tár (2022)

Um roteiro tão complexo como este poderia muito bem ser desperdiçado, caso a Direção não estivesse a par. Não é o caso. A direção de Field é sempre certeira ao retratar a protagonista e construir o mundo ao redor dela, ao invés do contrário – característica advinda da estrutura biográfica que o longa adota. É graças a sua habilidade que Blanchett transforma o filme na plataforma mais plana possível para desfilar toda sua potência, embora tal magnitude e presença de palco acabe por ofuscar seus colegas de elenco, que não conseguem ir além da mediocridade em comparação com a fera em tela que é a atriz principal.

A direção ainda atua de mãos dadas com o trabalho de Fotografia, que não pode ser considerado nada menos que fenomenal, usando das mais variadas texturas nos cenários e na mise-en-scène, recurso que acaba por passar uma sensação quase palpável de asperidade na tela. Alia-se ainda a iluminação primorosa, que cumpre perfeitamente seu papel de destacar o que merece destaque e ocultar o que não deve ser visto.

O embate entre o visto e o oculto é o que move a trama do filme. Tár, aos olhos do mundo, é a mulher mais renomada no ramo da música clássica; no entanto, quem deveria servir de inspiração para outras mulheres e romper com os padrões comportamentais de seus predecessores apenas os repete, continuando uma tradição de abuso e assédio que se encontra enraizada na cultura, como demonstrado na cena da sala de aula, em que um aluno negro se recusa a tocar uma composição de Bach alegando que o músico era preconceituoso e misógino. Ignorando completamente tal questão, a regente passa a defender Bach e sua música; neste caso, ela não se preocupa em separar a arte do artista, mas sim defende que o ato de fazer boa arte justifica e perdoa o comportamento errático do autor. É disso que ela tenta se convencer, pelo menos. Visto que, deste modo, ela estaria livre da culpa do abuso que dirigiu a outras mulheres.

A cultura da idolatria do artista é a raiz de todo esse mal, afinal, se um ídolo pessoal como Bach pôde fazer tudo o que fez e continuar sendo aclamado por séculos, por que ela não poderia? Infelizmente, esse cenário não se limita à ficção, e o caso de Polanski é prova disso.

O Código de Hamurabi, criado na Mesopotâmia Antiga, defendia o sistema punitivo de “olho por olho, dente por dente”, procurando assim deixar o criminoso como exemplo para os outros. Claro que essa prática é inaceitável nos dias de hoje; porém, qual é a mensagem deixada para aqueles que veem um pedófilo condenado e foragido com o troféu dourado mais cobiçado do mundo da arte em mãos?

+++ Leia a crítica do filme ‘Vortex’, de Gaspar Noé

Fosse feito dez anos atrás, antes de toda onda do movimento #MeToo, o filme não teria a mesma relevância que tem hoje. É necessário ter muita coragem para realizar um filme com uma crítica tão pertinente a Hollywood. Mas Todd Field não só o realizou, como o fez da melhor forma possível. Tár é o exemplo perfeito da arte sobre arte. Uma arte precisa, sensível e impecável em todos os aspectos imagináveis.


Poster do filme Tár

INFORMAÇÕES:

Título Original | Ano: Tár  | 2022
Gênero: Musical, Drama, Biografia
País: Estados Unidos
Idioma: Inglês, Alemão, Filipino, Francês
Duração: 2:38 h
Classificação: 12 anos
Direção: Todd Field
Roteiro:Todd Field
Elenco: Cate Blanchett (Lydia Tár), Noémie Merlant (Francesca Lentini), Sydney Lemmon (Whitney Reese), Mark Strong (Eliot Kaplane), Nina Hoss (Sharon Goodnow) e outros
Data de Lançamento: 26 de janeiro de 2023
Avaliações: IMDB| Rotten Tomatoes

 


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