‘A Forma da Água’ é encantador e acerta em cheio nas metáforas, mas carece de alma


Tudo em A Forma da Água é tão bonito e cinematograficamente perfeito que impressiona desde a primeira cena, quando a protagonista sonha com sua casa totalmente submersa no fundo do mar e essa beleza segue até o último momento de projeção. O apuro visual e peculiar do diretor Guillermo del Toro se faz mais uma vez presente aqui, num estilo que une a ludicidade das fábulas contrastando com elementos de sexo e violência. Esse exercício atingiu seu auge no excepcional O Labirinto do Fauno no qual esse contraste chega a chocar. Aqui esse viés é bem mais brando, mas não deixa de causar desconforto em algumas cenas mais sangrentas.

Apesar de todo deleite visual, sentimos que falta algo que torne essa fábula fantástica mais imersiva e crível. Não que uma fábula deva ser realista, longe disso, mas as relações e sentimentos que movem as personagens devem ser desenvolvidas com calma e esmero, sob pena de parecerem frágeis ou forçadas. Nem esse leve atropelo na criação da relação entre as personagens tira o brilho e a genialidade do filme, rico em símbolos e metáforas que só engrandecem a narrativa.

A estória se passa na década de sessenta e acompanha uma auxiliar de serviços gerais que trabalha em um laboratório secreto do governo. Em uma de suas faxinas, ela testemunha a chegada de uma criatura desconhecida – um espécie de homem anfíbio – que ao sofrer torturas, reage com violência às investidas dos militares, causando um sentimento de compaixão na moça.

Na tentativa de tirar esse ser estranho do laboratório, a faxineira (muda) vai precisar da ajuda de seu vizinho (homossexual), sua colega de trabalho (negra) e de um dos cientistas (imigrante estrangeiro).

Estabelecido esse cenário, o que acompanhamos nas entrelinhas é um conflito entre as minorias citadas e o chefe da segurança militar, interpretado pelo sempre excelente Michel Shannon, que nos faz detestar seu vilão racista, homem de “família” hipócrita, com sonhos de consumo e ostentação capitalistas, além de torturador e assediador sexual. Ou seja, quase todas as mazelas do mundo atual representadas nesse personagem, nos fazem temê-lo sempre que aparece em cena, pois a ameaça que ele representa é muito real, afinal, enfrentamos esse tipo de monstro todos os dias.

Por outro lado temos “a princesa muda”, como o próprio narrador define, a protagonista vivida pela excelente atriz Sally Hawkins, que nos entrega a melhor interpretação de sua carreira, transmitindo sentimentos extremamente complexos apenas com olhares, trabalho de respiração e comunicação física. Destaque para uma cena angustiante na qual ela tem uma discussão em “voz alta” com o seu vizinho.

Impossível, não destacar também todos os aspectos técnicos, com destaque para iluminação, fotografia e design de produção, que ajudam a compor um filme de atmosfera sempre úmida, trazendo referências diretas ou indiretas a outro personagem fundamental: a água. Ela está presente em quase todas as cenas, seja numa panela cozinhando um ovo, num copo que vira, na banheira na qual a protagonista se toca diariamente – estabelecendo sutilmente a relação entre sexo e água -, nos pingos deslizando pela janela do transporte, na chuva torrencial que assola a cidade no terceiro ato, etc.

+++ Leia a crítica de ‘Aftersun’, de Charlotte Wells

Com 13 indicações ao Oscar, A Forma de Água não aborda uma história inovadora nem ao menos original – já vimos situações parecidas em Free Willy, A Bela e a Fera e O Monstro da Lagoa Negra -, mas o que chama atenção aqui não é o que é mostrado, mas sim a forma e a profundidade com o qual esses temas são ampliados e revistos de uma maneira muito mais madura. E essa forma, conduzida por Guillermo del Toro, beira a perfeição!


FICHA TÉCNICA:

Gênero: Fantasia, Aventura, Drama, Romance
Duração: 2h03min
Direção: Guillermo del Toro
Elenco: Sally Hawkins (Elisa Esposito), Michael Shannon (Richard Strickland), Richard Jenkins (Giles), Octavia Spencer (Zelda Fuller), Michael Stuhlbarg (Dr. Robert Hoffstetler), Doug Jones (Amphibian Man) , e outros.
Roteiro: Guillermo del Toro, Vanessa Taylor
Lançamento: 01 de fevereiro de 2018 (Brasil)
IMDB: The Shape of Water

 

 


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