“Série da HBO retoma o universo dos incríveis e indeléveis vigilantes”
Adaptações para o cinema ou televisão de obras clássicas sempre são vistas com certa desconfiança pelos fãs do material original, seja por fazerem mudanças para que a obra se adapte a outra mídia, ou por simplesmente não conseguirem narrar com a mesma precisão que o autor original, levando ao espectador um material que, digamos, acaba sendo apenas um recorte do material de origem.
ALAN MOORE E SUA RELAÇÃO COM AS ADAPTAÇÕES DE SUAS CRIAÇÕES
Alan Moore tem dedicado sua vida às chamadas Graphic Novels. Com algumas boas incursões pela literatura convencional, sempre foi contrário a adaptação de seus trabalhos em outras mídias, por acreditar que o seu material não poderia ser utilizado no cinema, teatro, televisão, ou até mesmo transformado em livros convencionais.
Moore sempre teve uma relação muito difícil com as editoras, pois nunca aceitou que não tivessem o controle criativo total sobre suas obras, fato que transformou a DC Comics em Persona Non Grata para o escritor. A própria DC sempre se deixou claro que quando os livros fossem impressos, voltariam para seu criador, o que nunca vai acontecer, devido ao o número de relançamentos das obras pela editora.
Em certa ocasião Moore declarou: “Meu livro é uma história em quadrinhos, não um filme, nem um romance. Uma história em quadrinhos”, disse ele à Entertainment Weekly em 2005. “Foi feito de uma certa maneira e projetado para ser lido de uma certa maneira”.
Portanto, sempre que se ventila, e até se concretiza a transposição de uma de suas obras para o cinema ou televisão, Moore se recusa a ser associado a adaptações do seu trabalho que não possui controle. Com isso, todos os pagamentos vão para os ilustradores que trabalham ao seu lado.
Não que ele nunca tenha sido convidado para fazer roteiros para a TV ou Cinema, mas sempre reticente, segue sem interesse em se curvar à grande indústria. Com isso, os programas que chegam as telas não tem sua participação, o material original serve apenas como base. Algumas dessas adaptações até rendem momentos interessantes, mas nunca soam tão originais como o material base.
Em tempos que cada vez mais as Graphics são feitas e pensadas para alcançar outras mídias, pode-se dizer que Moore segue firme em sua “batalha de um homem só”. Recentemente ele concordou em participar de um filme como Deus, participando também do roteiro. Um projeto pequeno, filmado em sua própria cidade e realizado pela TV britânica. Pode ser que com a idade ele tenha ficado um pouco menos radical.
Sempre muito crítico ao sistema capitalista, à monarquia inglesa, às desigualdades sociais, e diferença de gêneros, Moore injetou em suas obras temas que transitam nesses e em outros assuntos, apresentando personagens que vão de encontro ao glamour dos personagens que usam capa. Seus trabalhos questionam a dicotomia entre bem e o mal, algo que permeia toda a sua carreira.
Quando foi anunciado que Watchmen seria adaptada para a TV, muitos torceram o nariz, incluindo o próprio Moore e seus fãs mais calorosos, como forma de apoio ao roteirista. Considerado por muitos uma obra de difícil adaptação, Watchmen já tinha encontrado o caminho da tela grande em 2009 pelas mãos do diretor Zach Snyder.
Com fotografia arrebatadora e que continha as nuances encontradas na Graphic, o filme não teve um êxito total por escolhas artísticas como, por exemplo, retirar conteúdo importante como Contos do Cargueiro Negro [NE: Contos do Cargueiro Negro saiu apenas na versão Ultimate Cut, em DVD] e uma mudança radical no final. Por mais que entenda que as ausências fazem sentido, e o resultado tenha sido bastante satisfatório, se percebe uma certa ausência de ousadia, tão presente na obra de Moore. O produto final é muito redondinho para ser aceito pelo público convencional.
CRIANDO WATCHMEN, A SÉRIE
A Warner, dona dos direitos áudio visuais da obra, em parceria com a HBO, decidiu produzir uma série a partir do material original, mas sem a participação de Moore. Para a empreitada convocou Damon Lindelof, criador de Lost (juntamente com JJ Abrahams), e de uma das séries mais subestimadas também da HBO, Leftovers, e o desenhista e parceiro de Moore na Graphic, Dave Gibbons, juntamente mais uma equipe de roteiristas.
Debruçando-se sobre o material original, o novo produto não seria uma adaptação da obra, mas sim um novo material, baseado na HQ, trazendo uma trama em um mundo completamente novo e diferente daquele de mais 30 anos atrás, mas que trazia todas as incongruências daquela realidade alternativa da obra original.
Primeiramente, o que tem que ser dito é que a série Watchmen não é um produto fácil, pois mexe com questões que não foram tratados na obra original, mas tem muita relevância nos dias atuais. No original de Moore – cerca de 30 anos atrás -, o mundo apresentado em Watchmen era uma espécie de realidade alternativa, e nessa realidade Nixon levou os Estados Unidos a venceram a Guerra do Vietnã com a ajuda fundamental de dois vigilantes, o Comediante e principalmente do Dr. Manhattan. Em decorrência disso, teria permanecido no poder por um longo período.
O MOTE PARA A SÉRIE
Na série, somos apresentados ao personagem do Will Reeves, que é salvo em um dos episódios mais sombrios da sociedade americana: o massacre que destruiu a “Wall Street Negra” há quase cem anos, na cidade de Tulsa. Dentro desse contexto, a história de Watchmen começa muito tempo antes da Graphic. Depois dessa explanação, somos lançados à mesma Tulsa nos tempos atuais só que na realidade de Watchmen, onde um grupo supremacista branco autointitulado A Sétima Cavalaria, inspirada nos escritos do Vigilante Rorschach (da obra original), e usando máscaras que imitam a do próprio Rorschach, estão em uma cruzada, ou podemos dizer, uma violenta guerra contra as minorias e a polícia de Tulsa.
Tal conflito é gerado devido a uma lei de reparação para as minorias, instituída pelo presidente Robert Redford, sim o ator americano pacifista e criador do Festival de Sundance. Assim como o próprio Nixon, Redford vencera as eleições, e permaneceu todo esse tempo no poder, instalando várias políticas de reparações históricas para com as minorias, as chamadas Redfordations. Isso fez com que as ditas maiorias, se sentindo menosprezadas diante de todo esse avanço social, se rebelassem contra o sistema. Qualquer semelhança com a realidade brasileira é mera coincidência!
O show é distintamente do “agora”, invocando a política racial de uma América fraturada, enquanto ocorre em um 2019 alternativo que surgiu dos eventos dos quadrinhos. Ele se concentra, na maioria das vezes, em personagens que se sentem sucessores espirituais da formação original de Watchmen, antes devagar, mas com segurança, trazendo nomes familiares de volta à sua história.
Embora, talvez de forma mais potente, o programa se concentre em alguns dos cantos inexplorados dos quadrinhos como um meio de explorar a história americana, especificamente em partes dessa história que foram varridas para debaixo do tapete.
APROFUNDANDO NA HISTÓRIA
Na Véspera do Natal de 2016, durante um evento que veio a ser conhecido como a “Noite Branca,” a Sétima Cavalaria atacou as casas de 40 oficiais de polícia, que trabalhavam em Tulsa. Dos sobreviventes, apenas dois permaneceram na força policial: a Detective Angela Abar, a protagonista da série, excelente, vivida pela atriz Regina Fucking King e o Chefe Judd Crawford com um cinismo impressionante vivido por Don Johnson. Como a força de polícia foi reconstruída, novas leis foram criadas, fato que fez com que os policiais fossem obrigados a não divulgar sua profissão, e para proteger suas identidades, no trabalho foram condicionadas a usarem máscaras que escondessem os seus rostos.
Watchmen, podemos dizer que é uma das adaptações mais surpreendentes de uma Graphic Novel. A serie vai se desenvolvendo lentamente e se desenrola como um conjunto de bonecas russas, onde cada vez que você abre uma boneca mais fundo vai chegando daquele brinquedo. Se mostra tão cinematográfica que a qualidade impressiona, chegando a fazer com que o espectador perca o fôlego; muitos diriam que em muitas vezes, a série acabe soando pretensiosa.
Digo sem sombra de dúvidas, Watchmen apresenta um produto que poucas vezes o cinema atual conseguiu atingir em excelência, ainda mais em um tempo de tantas adaptações de quadrinhos. Há um episódio de flashback em preto e branco que merece entrar nas listas dos melhores episódios individuais da TV da década. Me arrisco a dizer que Damon Lindelof pegou os melhores trechos que aprendeu em Lost e The Leftovers e produziu uma sequência que é bem próxima de uma obra prima.
PERFEIÇÃO TÉCNICA
Desde a concepção do universo, mesmo que muito evoluído com Zeppelins e carros movidos a energia elétrica que não fazem barulhos, a ausência de celulares, tudo em Watchmen foi pensado para retratar uma distopia tão interessante quanto as distopias mais famosas da literatura mundial. O design de produção é sensacional, as roupas dos personagens, os veículos, a máscara de Looking Glass, fazendo uma clara alusão ao Rorschach, é incrível! A fotografia da série é espetacular, e por incrível que pareça, ela mantém a atmosfera encontrada na obra original que diferenciava em muito as Graphics do mesmo período, mesmo atualizada para o futuro em questão, sempre favorecendo os esforços narrativos que o programa exige.
A trilha sonora investe em temas futuristas, mas com certo tom de degradação, temas constantes na literatura Cyberpunk. Os efeitos visuais são muito bons até para a TV. O cuidado que se teve com a adaptação é de passar horas e horas elogiando.
IMPORTÂNCIA DE REGINA KING E ELENCO
A performance de Regina King ancora o seriado. Os melhores momentos surgem da vulnerabilidade nos olhos de King, quando ela deixa a máscara de Abar escorregar. A máscara emocional de Abar, como uma policial endurecida pela vida, que vai para os Estados Unidos do 51º estado americano, na série, o Vietnã. Abar também usa uma máscara literal como parte de sua identidade de “super-herói”, inspirada em um filme Blaxploitation, Sister Night, apesar de eu colocar “super-herói” entre aspas porque Night é, de fato, uma mulher de direito. Sua personagem consegue ser durona e emocional em momentos chave durante todos os episódios.
Por sua vez Don Johnson, o chefe Judd, se mostra como uma pessoa de caráter duvidoso, e seu cinismo como falado anteriormente é impressionante. Finalizando os novos vigilantes temos Tim Blake Nelson, como Wade Tillman/Looking Glass perfeito no papel, um detetive que através do depoimento de suas testemunhas consegue qualquer informação sem apelar para a violência, e mesmo assim tem seus demônios para exorcizar, e além de tudo isso, é dono da máscara mais badass do seriado.
Jean Smart dá vida a Laurie Blake, antiga Spectral, agora, uma agente que caça pessoas que querem se passar por vigilantes, ignorando o seu passado de vigilante e adotando o sobrenome do pai o Comediante, um dos primeiros vigilantes, e vemos que com o passar do tempo se tornou mais parecido com seu pai do que ela própria esperava, e por fim Jeremy Irons, como um personagem misterioso, que vive uma vida idílica em uma paisagem bucólica.
O QUE ESTAVA ESCONDIDO E SE REVELA NO ATO FINAL
Diante dos conflitos sociais, somos apresentados aos personagens da Lady Trieu, uma farmacêutica beneficente que adquiriu todos as empresas de Adrien Veidt e a transformou em uma mega corporação, com braços espalhados em todo mundo. Trieu tem planos audaciosos que serão revelados aos poucos.
Agora: temos um deus para matar.
É uma afirmação ousada que ela faz no final de Watchmen. Tamanha ousadia, sendo parte da descrição do trabalho de um gênio louco dos quadrinhos, é também uma espécie de declaração de missão para essa série ousada e de tirar o fôlego, que em uma temporada levou a história americana e a mitologia pop, desmontou-a até seus menores átomos e a reconstruiu de uma forma que era familiar, mas totalmente nova.
É difícil exagerar o quão arriscado, como preparado para o desastre, foi o desafio que o criador, Damon Lindelof, se inscreveu. Primeiro, adaptar um quadrinho de super-herói subversivo notoriamente difícil de adaptar. Então, subvertendo essa subversão de maneira amorosa e maliciosa, estendendo a história para trás e para frente no tempo. Para fazer tudo isso enquanto reformulava a história como um thriller de importância anti-racista, pesado sem ser pomposo ou explorador. Ah – e também poderia ser eletrizante, brincalhão e divertido!
EPÍLOGO
Fora todos os elogios que a série merece receber, Lindelof criou algo mais: um entretenimento urgente que é tão irreconhecível quanto o toque de uma campainha de alarme. Mesmo sem o aval do seu criador, a abordagem de sempre honrar a obra original, desmontando-a e questionando o apelo dos vingadores mascarados – em primeiro lugar – está muito no espírito do original.
A reinvenção de Watchmen para a TV torna o assunto de supremacia branca, ao invés da Guerra Fria, muito atual. Sem esquecer de mencionar Angela Abar, poderíamos considerar como uma certa vingança negra dentro da própria polícia, um assunto que também encaixaria com perfeição nas criticas que Moore traçou há mais de 30 anos atrás ao gênero de Super heróis, fato comentado em uma entrevista em 2016.
Infelizmente não há informações de uma continuidade da série, mas ela funciona como um programa de uma única temporada, com um final bastante satisfatório.
Watchmen se consolida como um dos melhores programas do ano passado, se não o melhor, num ano que teve Chernobyl, a terceira temporada de True Detective, Years and Years, dentre tantas outras excelentes, não é pouco! O programa já nasce como um clássico!
NOTA: 9.5
NOTA DOS REDATORES:
EDUARDO JULIANO: –
EDUARDO SALVALAIO: –
LUCIANO FERREIRA: 8.7
MARCELLO ALMEIDA: –
MÉDIA: 9.1
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:: FICHA TÉCNICA:
Temáticas: Ação, Drama, Mistério
Emissora (EUA): HBO
Temporadas: 1
Episódios: 9 (cada um com um tempo de 60 minutos aproximadamente)
Criador da série: Damon Lindelof
Produtores executivos: Damon Lindelof, Nicole Kasselle outros
Elenco: Regina King, Don Johnson, Tim Blake Nelson, Yahya Abdul-Mateen II, Louis Gossett Jr., Jeremy Irons, Jean Smart e outros
Censura: 16 anos
Avaliações: IMDB: | Rotten Tomatoes
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