“Minissérie da HBO comprova poder da emissora em criar mais que um produto para entretenimento”
“Radioatividade está no ar para você e para mim” (Radioactivity, Kraftwerk)
Um suicídio e uma explosão, dois eventos separados pelo lapso temporal de exatos dois anos, mas com o mesmo pano de fundo: a mentira. Ambos ligados a um mesmo acontecimento, com causas e consequências diretamente relacionadas a mentira. Dessa mentira derivam uma série de adjetivos como ganância, desinformação, orgulho, negligência, soberba e tantos outros que o próprio espectador/leitor irá preenchendo à medida que assistir cada um dos cinco episódios de “Chernobyl”.
Embora a explosão do reator nuclear seja o ponto de partida e de chegada para toda a série, é a mentira que estará sempre nas entrelinhas. E seu nome aparece já nos primeiros minutos.
As cenas citadas no primeiro parágrafo poderiam ser o desfecho e o começo da minisserie da HBO, surgem já de início, o processo de edição dá essa possibilidade, impossível na vida real. Da mesma forma, enquanto os desdobramentos desses dois acontecimentos se encerram na ficção, na vida real eles reverberam por décadas, com efeitos impossíveis de serem mensurados com precisão.
Se se considerar a proposta por detrás da série e o fato de se basear em acontecimentos reais, muitos amplamente divulgados na imprensa, em documentários, em livros e principalmente por conta do sucesso da própria série, perde bastante o sentido usar o termo spoilers nesse texto. Inclusive porque ao subverter a ordem dos acontecimentos ou tentar não fazer o óbvio, que seria traçar uma linha reta dos acontecimentos, subentende-se uma tentativa de evitar a romantização de uma tragédia de consequências inversamente proporcionais ao nível de conhecimento das pessoas do que realmente se passou na usina de Chernobil.
Às 1:23:45 do dia 26 de abril de 1986, o reator nuclear número 4 da Usina Nuclear de Chernobil, próximo da cidade de Pripyat, explodiu quando eram feitos testes de segurança, deixando o núcleo exposto e lançando material radioativo na atmosfera. Com a explosão, houve um incêndio no prédio. Bombeiros foram chamados para conter as chamas do que lhes parecia um incêndio comum. A explosão e o brilho de cores produzido pela radiação, visível no céu, atraiu pessoas para uma ponte para melhor observar o “espetáculo”, que trouxe poeira radioativa e chuva ácida: contaminação.
“Chernobyl” narra de uma forma quase documental os acontecimentos que levaram a explosão do reator. A opção pelo tom quase didático de narrativa, que a um primeiro olhar pode parecer desinteressante, na verdade serve para situar o espectador num universo de termos técnicos de Química e Física. Isso não reduz a força narrativa ou o impacto dramático.
É o mesmo tipo de escolha que se faz ao optar por focar o drama de toda a população local na figura do casal Ignatenko (o bombeiro Vasily e sua esposa Lyudmilla), priorizando, inclusive por questão de tempo, a busca de respostas: Por que o acidente ocorreu? Quem são os culpados? Quais as consequências? Poderia ter sido evitado? O que poderia ter acontecido? O que fazer para evitar que não se repita!
Diante de um quadro que se alastra a cada segundo e decisões são deixadas para serem tomadas mais tarde, surgem as figuras protagonistas: o químico Valery Legasov, numa interpretação corretíssima de Jared Harris (The Terror); Ulana Khomyuk (Emily Watson), personagem fictícia que na série representa os diversos cientistas que contribuíram com Legasov durante toda a investigação do ocorrido em Chernobil; e Boris Shcherbina (Stellan Skarsgård), político ligado ao alto escalão da União Soviética. Eles representam o ponto de racionalidade em meio a um mundo de decisões atabalhoadas dos responsáveis pela usina.
Causa indignação e perplexidade a maneira irresponsável e mesquinha como muitas atitudes são tomadas por aqueles que, teoricamente, deveriam ser os responsáveis pela segurança tanto daqueles que estão diretamente ligados a usina nuclear, os trabalhadores, quanto indiretamente, bombeiros e população em geral. Para tentar remediar um erro, incorre-se a outros muito maiores, com consequências devastadoras na vida de milhares de pessoas. Obrigar um funcionário a ir próximo ao reator exposto para verificar o que aconteceu ou afirmar que está tudo sobre controle quando uma cidade inteira está exposta a níveis alarmantes de radiação é algo de uma crueldade e absurdo de deixar qualquer um paralisado.
Com um trabalho de produção de arte irretocável, fotografia belíssima, e trilha sonora pontual, “Chernobyl” traz para os dias atuais, a despeito de toda a parte ficcional, um conjunto de informações sobre o acidente pouco conhecidas, as mais impactantes: a quantidade de pessoas envolvidas no processo de “descontaminação” da região, logo expostas aos efeitos da radiação, e o que poderia ter acontecido se o reator tivesse entrado em fissão caso não tivessem sido adotadas as medidas necessárias. Traz a tona discussões diversas além das já elencadas ao longo do texto. Mostra o quanto somo vulneráveis ante ao terror invisível da radiação nuclear.
Há alguns momentos e frases desnecessárias. A cena dos mineiros trabalhando sem roupa, que não aconteceu, é um deles. Assim como a frase que faz piada em relação a União soviética não ter conseguido enviar o homem a lua. Há outras, mas não conseguem diminuir o impacto da série.
“Chernobyl” deveria ser assistida por todos, não apenas como um produto ficcional, mas como um documento valioso sobre um acontecimento histórico que por décadas se manteve sobre sigilo; como homenagem aos milhares de heróis anônimos que deram a vida para impedir que algum de proporções catastróficas acontecesse; e como exemplo de caráter a ser seguido, expresso nas palavras de Legasov já no último episódio: “Quando a verdade ofende, mentimos até não nos lembrarmos mais dela. Mas ela continua lá. Cada mentira que dizemos incorre uma dívida à verdade. Mais cedo ou mais tarde, essa dívida é paga…Eu sei quem sou e sei o que fiz. Num mundo justo, eu seria morto pelas mentiras, mas pela verdade, não”.
:: NOTA: 10,0 9,0
NOTA DOS REDATORES:
EDUARDO SALVALAIO: 10,0
ISAAC LIMA: 10,0
EDUARDO JULIANO: 10,0
MÉDIA: 9,8
LEIA TAMBÉM
– LOVE, DEATH & ROBOTS (LOVE, DEATH & ROBOTS, 2019)
– O TERROR (THE TERROR, 2018)
:: FICHA TÉCNICA:
Emissora (EUA): HBO
Temporadas: 1
Episódios: 05 (tempo aproximado de 60 minutos cada)
Criadores da série: Craig Mazin Diretor: Johan Renck
Elenco: Jared Harris, Stellan Skarsgård, Jessie Buckley, Emily Watson, Paul Ritter e outros.
Temáticas: Drama, História
IMDB: Chernobyl
:: Assista ao trailer:
Criterioso como lhe conheço (não sei se é o termo exato), você dar um 10 é porque no mínimo vale muitíssimo a pena. Mais uma excelente resenha.
P.S.: Fica a dica de um excelente documentário com cenas reais da época – https://www.youtube.com/watch?v=bv4AoqZsfHs
Obrigado, Ângelo. Para mim, uma série irretocável. Superou minhas expectativas. Assistirei o documentário depois.