“Anne é o retrato de uma sobrevivente de abuso, abandono e trauma, numa moldura de rara beleza e poesia”
Após inúmeras adaptações desastrosas, Anne of Green Gables, a clássica coleção de livros da escritora L.M. Montgomery, publicada inicialmente em 1908, finalmente encontra sua melhor e definitiva versão, que inadvertidamente chega ao final após três temporadas da mais alta qualidade.
A série canadense da CBC, veiculada mundialmente pela Netflix, traz temas de extrema relevância contemporânea, além de acarinhar os sentidos e provocar os melhores sentimentos em meio às inúmeras adversidades vividas pela protagonista, que tem como característica mais marcante a capacidade de ver a vida sob o prisma intenso dos grandes sonhadores.
Na belíssima abertura, que mistura fotografias reais com pinturas em 3D, encontramos a síntese de toda a jornada da Anne, pontuada por algumas frases talhadas em galhos de árvores, as quais aproveitaremos aqui como tópicos.
Um perfeito cemitério de esperanças enterradas
A primeira temporada parte de um lugar sombrio. A órfã Anne, já adolescente, depositando todas as suas esperanças em mais uma tentativa errada de adoção, visto que os aspirantes a pais haviam “encomendado” um menino ao orfanato. Todo o estresse da rejeição a faz rememorar inúmeras vivências de abusos físicos e psicológicos sofridos até então.
Essas memórias árduas são primordiais para que a audiência imediatamente perceba que Anne é uma sobrevivente e se importe verdadeiramente com o destino da personagem. Numa época em que os direitos da criança e do adolescente não passavam de meras conjecturas e dependiam exclusivamente do bom senso dos adultos, sobreviver era também uma questão de sorte.
Você jura ser minha amiga para todo o sempre?
A solidão nos orfanatos a fez mergulhar ferozmente na única fuga possível: os livros. Os poucos e despedaçados livros que Anne consegue ter acesso a fazem sonhar com reinos distantes, princesas encantadas e toda a sorte de aventuras em realidades alternativas.
Como mecanismo de defesa, Anne desconfia da realidade que a cerca. Quando passa a conviver com outras jovens, parece querer trazer as amizades inabaláveis das páginas de um livro para sua realidade, causando estranheza.
A amizade verdadeira é uma busca constante e nem sempre a recíproca existe. A segunda temporada da série acerta ao focar no processo de autoaceitação, mesmo que a personagem passe por clara discriminação e subestimação. Ser amiga de si mesma é também um ato de amor e coragem.
Grandes palavras são necessárias para expressar grandes ideias
Devido ao amor pela linguagem literária, Anne é falastrona. Seus discursos inflamados são tão veementes quanto seu aguçado senso de justiça. Sua fala rebuscada se coloca sempre em local de defesa das minorias (negros, índios, gays, mulheres). Suas ideias sobre emancipação feminina e o desejo por liberdade de expressão parecem estar à frente de seu tempo, mas nunca soam antinaturais ou forçadas, pois partem da própria natureza de ter seus direitos tolhidos desde o dia em que nasceu.
A injustiça sofrida serve como parâmetro para tentar proteger outros do mesmo mal. Porém a grandeza das palavras, neste caso, significa o ato de se fazer ser ouvida e não ao tamanho nem a erudição do discurso.
Dormir numa árvore à luz da lua
Na terceira temporada, a curiosidade de Anne a leva ao amadurecimento de tentar entender a sua origem. Descobrir quem são seus pais biológicos, pode significar a libertação final de seus traumas.
Esse amadurecimento se traduz em liberdade de espírito. Em dado momento, personagens comemoram e dançam ao redor de uma fogueira em meio a uma floresta, remetendo a uma celebração pagã. A infância e adolescência se desfaz e toda a simbologia do momento carrega uma aura de rito de passagem para a vida adulta.
Infelizmente o ciclo se fecha apressadamente e deixa lacunas que talvez nunca sejam respondidas caso se confirme que esta foi realmente a temporada final. Os oito livros no qual a série se baseia, ainda estão praticamente inexplorados. Existem rumores de que a Disney teria comprado os direitos e daria continuidade a série, mas nada foi confirmado oficialmente.
Anne With an E é uma série sobre o amadurecimento de uma flor em meio ao deserto do mundo.
Aposta em ótimos diálogos, fotografia belíssima, figurinos e reconstituição de época impecáveis, atuações tocantes e um roteiro enxuto, adaptado pela produtora e escritora vencedora do Emmy, Moira Walley-Beckett, conhecida pela produção de Breaking Bad (2008-2013).
Ao contrário de outras produções que apostam em violência, tensão, assaltos mirabolantes ou monstros de outra dimensão, Anne é uma série destinada para toda a família, um refrigério em dias preocupantes, um carinho no coração e na alma de quem assiste, uma aposta emotiva na esperança de dias melhores.
NOTA: 9,5
NOTA DOS REDATORES:
EDUARDO SALVALAIO: –
ISAAC LIMA: –
LUCIANO FERREIRA: –
MARCELLO ALMEIDA: –
MÉDIA: 9,5
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:: FICHA TÉCNICA:
Gênero: Drama
Temporadas: 03 (07 episódios)
Duração: 60 min (média de cada episódio)
Direção: Paul Fox, Amanda Tapping, Anne Wheeler, Norma Bailey e outros
Roteiro: Moira Walley-Becket (Roteiro), Baseado no Romance de Lucy Maud Montgomery
Elenco: Amybeth McNulty, Geraldine James, R.H. Thomson, Dalila Bela, Lucas Jade Zumann e outros
Data de Lançamento: 12 de maio de 2017
Censura: 12 anos
Avaliações: IMDB | Rotten Tomatoes
:: Assista ao trailer da 3ª Temporada:
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