“Da mistura improvável e inédita de elementos musicais brota a música intimista do Portishead em Dummy”
Portishead é uma cidade britânica costeira próxima a Bristol com cerca de vinte e cinco mil habitantes. Essas duas palavras juntas na mesma frase (Portishead – Bristol) remete quase sempre à banda de Trip-hop encabeçada por Beth Gibbons, Adrian Utley e Geoff Barrow, formada no primeiro ano da década de 90.
Barrow mudou-se para a cidade após o divórcio dos pais. Suas lembranças do lugar podem ser resumidas em suas afirmações anos depois: “It’s just a very very boring place” (É apenas um lugar muito muito chato), “It’s a place you can go to die” (Um lugar que você pode ir e morrer).
Desde a adolescência, Barrow esteve envolvido com as baquetas em bandas de rock, passando depois a trabalhar no estúdio Coach House (o mesmo que o Massive Attack gravou o álbum Blue Lines) como operador de fitas. Nas horas vagas, aprimorava seus conhecimentos sobre produção musical, principalmente loops.
Beth, por seu lado, carregava o sonho de ser cantora. Criada no campo, mudou-se para Bristol e passou a cantar (principalmente canções de Janis Joplin) em pubs, ao tempo que escrevia letras. Fã de Otis Redding, Nina Simone e Jimmy Cliff, também nutria certa paixão pelo U2, especialmente pelo álbum “Joshua Three”.
Quis o destino que essas duas almas se conhecessem em um curso de subsídio empresarial para pequenas empresas. Geoff estava procurando por uma vocalista para levar adiante um projeto musical; Beth queria expandir sua carreira: Bingo! Apesar dos gostos musicais em comum, o primeiro contato musical não foi dos mais positivos e poderia ter chegado ao fim ali.
Barrow seguiu seu trabalho em estúdio, contribuindo com outras artistas, como Neneh Cherry. Uma de suas composições, “Somedays”, que ele também produziu, entrou em “Homebrew”, álbum de 92 da cantora.
As coisas mudaram entre os futuros parceiros de banda quando Beth apresentou a Barrow a canção “It Could be Sweet”, que ele gostou mas preferiu fazer modificações. Nascia aí a parceria e logo o Portishead, que logo passaria a contar também com o guitarrista e produtor Adrian Utley, mais conhecido pelo seu trabalho com bandas de Jazz. Barrow havia conhecido Utley durante sessão de gravações que ele participou no Coach House.
Com o núcleo central estabelecido, Portishead assinou com a Go! Beat Records, e apresentou seu primeiro lançamento, o single “Numb” (1994), composto de cinco faixas, sendo quatro delas remixes da própria “Numb”.
“Sour Times”, o segundo single, segue os moldes ddo antecessor. Chama a atenção o uso dos samples das canções “The Danube Incident”, composição de 1969 do pianista argentino Lalo Schifrin para um dos episódios do seriado “Missão Impossível”; e da percussão de “Spin It Jag”, de Smokey Brooks. E, claro, os versos amargurados, que lamentam a perda de um amor ímpar: “Nobody Loves Me, It’s True, No Like You Do” (Ninguém me ama, é verdade, não como você).
Lançado um pouco mais de um mês antes de “Protection”, do Massive Attack, e poucos meses antes de “Maxynquaye”, de Tricky, o álbum de estreia “Dummy” de pronto manteve a atenção de público e crítica para a música do grupo de Bristol, iniciada com os singles. A atraente mistura de soul, jazz e funk com elementos de hip-hop e música eletrônica: samples e scratchs, somado a ambientações de trilha sonora e orquestrações, e uma aura de mistério e muita melancolia nas letras, somado ao feeling vocal de Beth, cuja entrega nas interpretações é um dos pontos altos da banda.
O orgânico e o eletrônico surgem em perfeita harmonia em prol de uma música que se não é de todo original, apresenta uma série de novas misturas e referências para a música pop, além de alguma experimentação. Estranhamente atraente e misteriosa, a música do grupo ao tempo que puxa pra dentro de seu universo, a um primeiro contato pode afastar, dada as ambientações totalmente intimistas, uma quase ode à solidão contemplativa.
Massive Attack, Tricky e Portishead de alguma forma estão conectados e não é apenas pela cidade. De comum musicalmente, os climas soturnos e o uso recorrente de elementos de Hip-Hop: batidas, samples e scratchs. A imprensa tratou de cunhar o termo Trip-Hop. Embora o Portishead seguisse por um lado musical mais “cinematográfico”, enquanto os outros pendiam para o Dub.
“Dummy” foi lançado em agosto de 1994. Traz em sua capa de tons predominantemente azulados uma foto de Beth Gibbons extraída do curta noir “To Kill a Dead Man”, dirigido por Alexander Hemming. Todo rodado em preto e branco, o filme traz, além da presença da banda numa trama de suspense policial, uma trilha sonora toda composta pelo Portishead.
Se os primeiros singles já foram surpreendentes, o álbum cheio confirmou as capacidades da banda, que seguia explorando todo aquele universo de referências através de ângulos diversos. “Dummy” é uma pequena coleção de excelentes ideias em forma de canções, todas soturnas, com cada faixa adquirindo vida própria sozinha, e ganhando mais força quando unidas no conceito do disco.
Um caldeirão de referências distribui-se ao longo do álbum, seja através de pequenos trechos (samples) ou no uso de toda uma melodia. De forma que pode-se encontrar além das citadas referências de “Sour Times”, Isaac Hayes (Ike’s Rap II), em “Glory Box”; Weather Report (Elegant People), em “Strangers”; além de War (Magic Mountain), em “Wandering Stars”e Johnny Ray (I’ll Never Fall in Love Again), em Biscuit”.
O álbum foi produzido pela própria banda e por Adrian Utley (que na época ainda não era um membro oficial do grupo), e gravado nos estúdios Coach House e State of Art, ambos em Bristol. Esse controle de estúdio foi um dos trunfos da banda, que pôde estruturar e moldar seu som para que soasse da forma como pretendiam.
Percebe-se em “Dummy” que as composições se estruturam a partir de beats pesados e dos vocais de Beth, com os sons do baixo gravíssimos também entrando como protagonista. A partir daí todos os outros instrumentos e elementos são coadjuvantes que se incorporam (entrando e saindo) ao longo do arranjo, como pequenas partes que se somam para dar dinâmicas e criar paisagens diversificadas: o uso de um theremin em “Mysterons”; um hammond e camadas de teclados em “It’s a Fire” (que não está na versão original do álbum) e “Numb”; o trompete em “Pedestal”; a nose flute e os elementos orquestrados da belíssima “Roads”, e a guitarra na cortante “Glory Box”, onde Beth implora: “Give me a reason to love you” (Dê-me uma razão para te amar).
“Dummy” é uma pequena obra-prima quase irretocável com um pequeno deslize em “It Could be Sweet”, a canção mais “comum” do disco, evidenciada pela falta das variações e da riqueza de elementos presentes nas outras canções. Não tira a grandeza do disco, até porque no conjunto da obra em nada destoa.
Importante lembrar que em 95, o álbum deu ao Portishead o Mercury Music Prize de melhor álbum, vencendo concorrentes como PJ Harvey, Leftfield, Van Morrison, Oasis, Supergrass e Tricky.
Pode-se medir a importância do álbum (e também da banda) tanto pelo número de grupos (Morcheeba, Mono, Hooverphonic, Goldfrapp, Ilya, Lamb, Olive, Smoke City, Zero 7) que surgiram e continuam a surgir inspirados pela sua sonoridade, quanto pelo fato de, passados vinte e cinco anos, ele não soa datado. Envelheceu mas continua soando atual, qualidade comum dos grandes álbuns.
NOTA: 9,5
FAIXAS:
01. Mysterons
02. Sour Times
03. Strangers
04. It Could Be Sweet
05. Wandering Star
06. It’s a Fire (Na versão CD)
07. Numb
08. Roads
09. Pedestal
10. Biscuit
11. Glory Box
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