O anúncio de uma nova adaptação ou de um remake pode apavorar, eu sei, mas já devo inicialmente acalmar os ânimos quanto a Gêmeas: Mórbida Semelhança. A nova adaptação do romance Twins, de Bari Wood e Jack Geasland, que ficou famoso nas mãos de David Cronenberg é sólida, proeza possível porque Rachel Weisz, além de protagonista e produtora executiva da série, soube fazer o que toda uma Hollywood normalmente aparenta esquecer: questionar como a obra se adaptaria aos dias atuais, ou seja, trazer uma nova leitura que justificasse sua existência.
Em 1988, a primeira adaptação do romance para o audiovisual chegava aos cinemas. Roteirizado, dirigido e produzido pelo mestre David Cronenberg, a versão de 88, que aqui ganhou o título de Gêmeos: Mórbida Semelhança, contava a história de gêmeos ginecologistas (Jeremy Irons) – ambos com especialidade em problemas de fertilidade – que, em aparência, eram idênticos, mas em personalidade, extremamente opostos. No filme, eles dividiam absolutamente tudo, mas a chegada de uma nova namorada ameaçava romper a ligação que ambos possuíam desde o útero.
Trinta e cinco anos depois, os gêmeos de personalidades opostas tornaram-se gêmeas também opostas. A especialização em infertilidade, de acréscimo, virou algo vital para a história, e Genevieve, namorada responsável pela instabilidade entre os irmãos, é apenas mais uma adição para uma relação que nunca esteve balanceada. Com o título de Gêmeas: Mórbida Semelhança, a nova adaptação – para além de um show de Rachel Weisz, que possibilita a dinâmica entre duas figuras exóticas em constante encontro – se aprofunda no universo feminino, com foco na maternidade, que é retratada na série como uma mercadoria, um setor onde se investe, se humaniza, mas também se capitaliza e se explora.
Atendendo ao pedido de Weisz, Alice Birch, responsável por Normal People e colaboradora do roteiro da segunda temporada de Succession, criou uma obra que desde os primeiros minutos tem como objetivo ser grande, entregando já em frames iniciais o que mais a frente pode ser identificado como sua principal marca: seus diálogos excêntricos e destemidos. Iniciando com uma conversa, em uma lanchonete, entre as irmãs e um estranho sobre incesto e a possibilidade da prática entre elas, optar por continuar naquela mesa é ganhar um assento para as próximas conversações, e encontro com novas pessoas que elevarão a singularidade das conversas e diminuirão, cada vez mais, o moralismo delas.
Do mesmo modo, o restante da composição da unidade estilística seguirá sua marca impulsionadora, o que não surpreende, afinal, Birch tem um longo histórico no teatro e tais características da arte vizinha não são escondidas na série. Por mais que exista uma clara diversão no tom excessivamente teatral e nas linhas de tais cenas, para Birch não basta que Gêmeas: Mórbida Semelhança seja ácida apenas nas palavras, é preciso igualmente incomodar quanto à condução.
Dessa maneira, a série adota o horror corporal – algo tão escondido em seu marketing – para ter um diálogo completo sobre a relação gravidez/indústria e, quando esse subgênero tem suas características removidas da tela, os substitutos são tão tabus quanto a um feto sendo removido de um vaso sanitário ou barrigas sendo abertas. Seus elaborados suplentes são cenas sexuais explícitas, exibição de partos normais e uso de drogas ilícitas, tópicos que, de quando em quando, se tornam discussão em redes sociais – onde até se questiona a censura – por deixar alguns usuários de serviços de streaming desconfortáveis enquanto consomem certo conteúdo. Nesse sentido, a série tem bastante coragem, e o ato de bravura nos permite acompanhar uma série sarcasticamente inteligente que, em nenhum episódio, demonstra ter medo de sujar suas mãos.
Tal traço marcante da série aparenta entusiasmar seu elenco, que corresponde perfeitamente a um estilo onde estranheza e sagacidade se confundem. Destaque para a dura mas curiosamente carismática performance de Jennifer Ehle, no papel de Rebecca; e o humor repulsivo mas engraçado de Michael Chernus, vivendo o Tom. Entretanto, quem mais se engaja ao ser o reflexo do projeto é Rachel Weisz, em um dos melhores papéis de sua carreira.
Para quem já assistiu a Desconhecida (2016), não é novidade ver a vencedora do Oscar interpretando personalidades distintas em um mesmo projeto. Mas aqui há um desafio maior, que, dado o resultado final, não a assustou de maneira alguma. Weisz consegue algo grandioso, ausente de falhas quanto a interpretação das gêmeas. Ela nunca está muito para Elliot e pouco para Beverly, e vice-versa, e a prova maior disso é quando ambas Mantle’s dividem a tela, momento onde as possíveis atenções quanto a técnica para manter duas Weisz em um mesmo lugar são desviadas para a atenção de algo que é fruto da capacidade de Weisz enquanto atriz: a habilidade de interpretar dois indivíduos de comportamento opostos e nos convencer disso.
+++ Leia a crítica do filme ‘A Favorita’, de Yorgos Lanthimos
Com grande performance da atriz – digna de dois Emmy’s – Gêmeas: Mórbida Semelhança é uma desintoxicação em relação ao conteúdo padronizado que sua própria casa (o Prime Video) apresenta, o que faz da série uma experiência que vale à pena arriscar, principalmente quando o sexto episódio tem tudo para se tornar um dos mais traumáticos (dignos de risos nervosos) da televisão em 2023.
FICHA TÉCNICA E MAIS INFORMAÇÕES:
Título Original | Ano: Dead Ringers | 2023
Gênero: Drama, Suspense, Terror
País | Idioma: EUA | Inglês
Episódios: 06
Direção: Sean Durkin, Lauren Wolkstein, Karena Evans e Karyn Kusama
Roteiro: Alice Birch (Baseado no livro ‘Twins’ e no filme ‘Gêmeos: Mórbida Semelhança’)
Elenco: Rachel Weisz, Jennifer Ehle, Britne Oldford, Poppy Liu, Michael Chernus, Kitty Hawthorne, Emily Meade e outros
Avaliações: IMDB | Rotten Tomatoes
No Comment