Brian Eno, o Da Vinci da era contemporânea?


Foto de Brian Eno, em 2021, para Especial do Urge!

Here we are stuck by this river
You and I underneath a sky
That’s ever falling down down down
Ever falling down
(By This River)

David Sheppard, o autor da biografia de Brian Peter George St. Jean Le Baptiste de La Salle Eno (On Some Faraway Beach: The Life and Times of Brian Eno), ou simplesmente Brian Eno, se refere ao compositor, intelectual, produtor, pai da Ambient Music, futurista, artista visual e mestre dos sintetizadores como o Leonardo da Vinci do século passado. Exageros à parte, a vida e as realizações de Eno o colocam como uma personalidade singular no ambiente artístico e intelectual dos últimos 50 anos. Sem a visibilidade que merecia ter para o grande público (em grande parte por opção própria de não seguir uma carreira de popstar), Eno revolucionou diversas vertentes da música pop e de vanguarda e ainda se tornou referência em termos de estudo do processo criativo por meio de livros, textos e palestras sobre o tema.

A trajetória de Eno tem como marco a sua relação com o tio Carl, que o introduziu ao mundo das artes e da música e o inspirou a mexer em todo e qualquer tipo de instrumento tecnológico. Seguindo o caminho lógico de entrar na escola de artes, Eno se destacou no período de faculdade pela mentalidade instigante e provocativa.

Depois de se mudar para Londres na década de 1970, Eno teve um encontro com um antigo conhecido, Andy Mackay, que o convidou para se juntar à banda que estava montando com outro ex-estudante de Artes, Bryan Ferry. Estava montado o Roxy Music, conjunto que combinou o Rock espalhafatoso em alta na época (batizado de Glam Rock) com toques experimentais que vinham especialmente dos sintetizadores de Eno – MacKay tinha um sintetizador primitivo e não sabia manipulá-lo, e Eno se adaptou rapidamente ao instrumento devido ao seu amplo conhecimento de geringonças de todo tipo.

Brian Eno com o Roxy Music
Eno com o Roxy Music

O carismático Eno, vestido em trajes carnavalescos como o resto da banda, passou a chamar a atenção da mídia e do público (especialmente o feminino, que alimentava seu apetite sexual implacável), ofuscando  Ferry, líder de fato do grupo, o que culminou numa crise de ciúmes e consequente saída de Eno após o segundo disco do Roxy Music, a obra-prima For Your Pleasure (1973). Disposto a seguir em carreira solo, Eno começou a compor e lançou seu primeiro disco autoral (o ótimo Here come the Warm Jets) em 1974.

Decidido a explorar as novas possibilidades tecnológicas e a escapar das amarras do Pop-Rock convencional, Eno – que se autointitulou “não-músico” e sempre se vangloriou disso – começou a explorar toda sorte de possibilidades tecnológicas e métodos para tornar o estúdio uma ferramenta poderosa, além de experimentar técnicas peculiares de estímulo à criatividade. Essas experimentações culminaram no livro Oblique Strategies, de 1975, escrito em parceria com o pintor Peter Schmidt, e em que eles apresentaram técnicas simples para estimular a mente em estágios de criação, como fingir que se é um personagem, seguir instruções aleatórias ou promover a troca de instrumentos entre os músicos.

Ainda em 1973, Eno iniciou uma frutífera parceria com Robert Fripp, líder e guitarrista da icônica banda de Rock progressivo King Crimson. Por meio da manipulação das guitarras de Fripp em bases pré-gravadas, eles deram origem a uma sonoridade desafiadora e que deu origem à famosa técnica batizada pelo guitarrista de “Frippertronics”.

Nessa época, Eno começou também a explorar a música generativa, em que ele colocava diversas gravações para tocar de forma não síncrona, de forma que as combinações variavam ao longo do tempo ad eternum, na medida em que as fitas se sobrepõem de forma imprevisível.

Os discos solo de Eno no formato de Art-Rock durante a década de 1970 tiveram baixo impacto comercial, mas impacto artístico gigantesco. Contando com uma seleção de músicos estelares, Taking Tiger Mountain (By Strategy) (1974), Another Green World (1975) e a magnum opus Before and After Science (1977) estabeleceram as bases para grande parte do Pós-Punk no final da década, com influência expressiva em discos de bandas como Wire e Talking Heads.

Sempre antenado com o que de melhor acontecia em termos de inovações musicais, Eno esteve na Alemanha em 1976 tomando “um banho de Krautrock”, fazendo gravações improvisadas com o super grupo Harmonia (que tinha membros das bandas Neu! e Cluster), e, posteriormente, lançando dois discos em parceria com Moebius e Roedelius, do duo Cluster. Eno também visitava Nova York regularmente, e acabou tendo um papel decisivo na documentação do movimento vanguardista radical No Wave ao fazer a curadoria do disco No New York, de 1978.

Brian Eno com David Bowie e Robert Fripp
Frip, Bowie e Eno

No entanto, os dois principais acontecimentos da vida artística de Eno nos movimentados e prolíficos anos 1970 foram a parceria com David Bowie e a “criação” e batismo da Ambient Music. Eno foi peça fundamental na chamada trilogia de Berlim, os discos que Bowie e o produtor Tony Visconti fizeram de 1977 a 1979 e que marcaram profundamente a música Pop. Eno exerceu um papel de consultor criativo e agregou elementos decisivos, como várias das texturas do lado B de Low, a manipulação hipnótica das guitarras de Robert Fripp na clássica faixa “Heroes”, e em diversos outros momentos. Em Lodger, Eno e Bowie usaram várias das estratégias oblíquas como elemento criativo, mas a relação de amizade intensa entre os dois acabou se desgastando.

A história da “criação” da Ambient Music, por sua vez, é das mais interessantes da história da música. Após sofrer um atropelamento, em 1975, Eno teve uma experiência que mudou os rumos da música pop ao pretensamente ter “descoberto” a música ambiente. De cama em casa, com dificuldades para poder se levantar, Eno pediu para uma amiga colocar um disco de música bem calma, baseada em harpas do século 18. Ela fez isso e saiu, só que o volume estava baixo demais. O disco ficou tocando até acabar e Eno (impossibilitado de se levantar para aumentar o volume) ficou prestando atenção nos sons da música se misturando ao barulho de chuva leve caindo lá fora e teve uma epifania: que tal criar uma música ambiente, que seja tão integrada ao entorno e naturalista que se tornaria praticamente imperceptível?

Estava criado o conceito de Ambient Music, que ele colocaria em prática numa série de discos, como o precursor Music for Films (1978) e uma quadrilogia memorável intitulada Ambient, em parceria com craques como o pianista minimalista Harold Budd, o multi-instrumentista Robert Wyatt e o trompetista Jon Hassell. O ponto alto foi o disco Apollo: Atmospheres and Soundtracks (1983), que foi concebido como a trilha sonora de um filme com imagens das missões da nave espacial Apollo. Em a parceria com o irmão, o pianista Roger Eno, e com o guitarrista e produtor Daniel Lanois, Eno criou um disco com texturas requintadas e toques de música Country, numa combinação etérea e viajante como o tema que visava retratar.

Requisitadíssimo por vários artistas, Eno começou a explorar as possibilidades de uma carreira de produtor, aproveitando seus vastos conhecimentos e a fama adquirida de “mago de estúdio”. Algumas experiências fracassaram devido ao choque de personalidades fortes (Television e Devo são exemplos), mas a parceria com o Talking Heads gerou como fruto três dos grandes discos de era New Wave: More Songs About Buildings and Food (1978), Fear of Music (1979) e o sensacional e influente Remain in Light (1980). Fazendo uma sofisticada (e questionável) apropriação da música africana, misturada com colagens e outras técnicas emergentes, Eno e os Talking Heads abriram portas para o crescimento da malfadada World Music, que dominou o cenário da música pop nos anos 1980.

Brian Eno com David Byrne
Byrne e Eno

Nos anos 1980, Eno desistiu de vez de seguir carreira como artista de Rock, e entrou de cabeça na exploração dos caminhos abertos por sua parceria com Bowie e os Talking Heads e pela popularização da Ambient Music. Convidado por Bono Voxpara ser produtor do U2, ele teve um papel decisivo no desenvolvimento da sonoridade de The Joshua Tree (1987), que elevou os irlandeses ao posto de maior banda do mundo.

A parceria com o U2 continuou nas décadas seguinte, e Eno foi requisitado por diversos outros artistas (Coldplay, Slowdive, Paul Simon, Lindsay Anderson, James, e vários outros), tornando-se figurinha fácil tanto no papel de produtor quanto no de guru criativo e parceiro ocasional. Eno só retornou ao formato Pop/Rock como líder de banda numa extraordinária parceria com John Cale em 1990. O álbum Wrong Way Up é uma joia pouco conhecida e mostra o talento de Eno como artesão pop e dotes vocais que ele sempre duvidou que tinha.

A aliança com Bowie foi refeita em Outside (1995), o melhor disco do “Camaleão do Rock” na década de 1990. Ainda em 1995, Eno recebeu o insólito convite para criar o jingle de abertura do Windows 95, bombástico lançamento da Microsoft. Ele criou 84 possíveis vinhetas, e uma delas foi escolhida. Detalhe: o jingle tinha que ter a duração de 3:25 segundos!

+++ Leia a crítica do álbum ‘Before and After Science’, de Brian Eno

De lá pra cá, Eno continuou tendo atuação importante em vários segmentos da vida artística, investindo na carreira de artista visual em instalações de vídeo itinerantes e na atividade de palestrante em eventos futuristas. Na música, se especializou em parcerias, com destaque para discos com os velhos amigos David Byrne e Robert Fripp, com Karl Hyde (Underworld) e com o herói do rock alternativo Kevin Shields (My Bloody Valentine).

Tenho que por mim que é bem possível que daqui uns 200 anos as realizações e o legado de Brian Eno sejam tão importantes que algum novo gênio que apareça vai ganhar o título de “Eno do novo milênio”. Posso muito bem estar errado, pois não sou um visionário como Eno, mas apostaria minhas fichas de que isso certamente vai acontecer!


Recomendações:

Álbuns de Rock:

Here come the Warm Jets (1974)
Another Green world (1975)
Before and After Science (1977)
Wrong Way Up (1990) – com John Cale
Nerve Net (1992)
Everything that Happens Will Happen Today (2008) – com David Byrne
High Life (2014) – com Karl Hyde

Álbuns de Ambient Music:

Ambient 1: Music for Airports (1978)
Ambient 2: The Plateaux of Mirror (1980) – com Harold Budd
Ambient 4: On Land (1982)
Apollo: Atmospheres and Soundtracks (1983)

Álbuns como colaborador/membro de banda:

For Your Pleasure – Roxy Music (1972)
Low – David Bowie (1977)
Heroes – David Bowie (1977)
Hybrid – Michael Brook (1985)
Souvlaki – Slowdive (1993)

Álbuns como produtor:

Remain in light – Talking Heads (1980)
The Joshua Tree – U2 (1987)
Words for the Dying – John Cale (1989)
Achtung Baby – U2 (1991)
Wah Wah – James (1994)
Outside – David Bowie (1995)
Viva La Vida or Death and All His Friends – Coldplay (2008)

Top 10 de músicas compostas por Brian Eno (OUÇA)

Third Uncle – Brian Eno (1974)
Everything Merges With the Night – Brian Eno (1975)
Heroes – David Bowie (1977)
By This River – Brian Eno (1977)
Fantastic Voyage – David Bowie (1979)
Once in a Lifetime – Talking Heads (1980)
Always Returning – Brian Eno (1983)
The Soul of Carmem Miranda – John Cale (1989)
Spinning Away – Brian Eno e John Cale (1990)
Strange Overtones – David Byrne e Brian Eno (2008)


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