Com trama simples e divertida, ‘Greice’ consegue surpreender

Em ‘Greice’, o diretor cearense Leonardo Mouramateus faz estudo cativante sobre uma personagem não confiável

“Mentiras sinceras me interessam” (Cazuza)

Disfarçar a própria realidade, acreditar ser mais interessante do que realmente é, ser protagonista de histórias nas quais é a heroína ou a vítima, ingressar em grupos ou lugares onde normalmente não seria aceita, enfim, existem inúmeros gatilhos para que o transtorno psicológico da compulsão por mentir, mais conhecido como mitomania, se instaure na vida da nossa protagonista, assim como se instaura na de muita gente.

Greice é uma jovem estudante brasileira vivendo em Portugal até que seu visto fica irregular após ser suspensa da escola de Belas Artes por se tornar a principal suspeita de incendiar um valioso quadro durante uma festa no campus. Enquanto a investigação segue seu curso, ela volta para Fortaleza, sua cidade natal, na qual se hospeda em um hotel, enquanto tenta recuperar o visto para voltar a viver seu sonho em terras estrangeiras.

Acontece que Greice está tão afundada nas ilusões e armadilhas que ela compulsivamente criou para si mesma, e para os que a cercam, que simplesmente não consegue mais viver de outra maneira. Assim, vai mentindo indiscriminadamente para todos que cruzam (ou não) seu caminho, incluindo a própria mãe – que imagina que a filha ainda está estudando em Lisboa.

Como é a própria Grace que narra a história e não existe qualquer pista sobre a veracidade do que está sendo mostrado, nos tornamos também “vítimas” de suas maquinações. Para que essa narrativa cheia de dubiedades funcione, visto que não temos uma narradora confiável, existem dois grandes acertos que merecem destaque: o carisma hipnótico da atriz estreante, Amandyra e o roteiro simples, porém muito sagaz no sentido de parecer querer dizer bem mais do que está na primeira camada, de autoria do próprio Leonardo Mouramateus, diretor do filme.

Aliás, a simplicidade não está somente no roteiro. Toda a cinematografia do filme, bem como o direcionamento teatral e naturalista dos atores, em performances que parecem propositalmente improvisadas, acabam ajudando a construir uma realidade quase fantástica para a Greice. Esse tom mambembe, além contribuir para não causar estranhamento nas passagens mais surreais e descabidas, diante das várias lorotas que a Greice despeja na tela, faz com que a trama avance sem que nos sintamos inclinados a tecer qualquer tipo de julgamento ético ou moral a respeito da nossa adorável cafajeste.

Greice é uma produção luso-brasileira muito simpática, que toma emprestado os maneirismos do cinema de humor independente norte-americano, para apresentar uma trama simples e divertida, cuja protagonista é tão bem construída e interpretada, que nos convence de que aquela personagem é real e está no meio de nós, afinal estima-se que a mitomania, de acordo com dados não oficiais da Organização Mundial de Saúde (OMS), já acomete cerca de um milhão de brasileiros.

Numa segunda camada, a trama parece apontar sempre para o sentimento de não aceitação em relação às incertezas da vida e a necessidade quase patológica de queremos controlar a percepção dos outros sobre nós, daí a necessidade das várias referências ao uso das máscaras e é genial que a personagem esteja literalmente usando uma máscara em seu momento mais vulnerável no filme, como se a máscara já fosse parte daquela persona e nada mais pudesse removê-la.

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Mas, mesmo assim, nem que seja por uma fração de segundo, o espelho provocado por uma nova paixão coloca um pouco de clareza nas prioridades e de repente, voltar a viver em Portugal, nem é tão importante assim. Importante mesmo é desvendar o mistério que leva ao maior prêmio que um imigrante pode ganhar: um barco, símbolo da liberdade de ir e vir.