‘Gigi’s Recovery’ é a exploração das profundezas da dor e redenção


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As estrelas sempre fascinaram os homens. Sua presença nas diversas formas de Arte confirma esse fascínio, como no quadro famosíssimo A Noite Estrelada, de Van Gogh, expressão máxima desse poder atrativo. Às estrelas estão ligadas ideias de esperança, clareza, iluminação, senso de mistério. Mas James McGovern, o vocalista e responsável pelas letras do quinteto irlandês The Murder Capital, preferiu rasgar toda a simbologia “romântica” associada a esses faróis noturnos. O fez de forma brutal na abertura do álbum de estreia de sua banda: “Eu sou uma estrela sem felicidade, corroída pelo núcleo”. É a frase que abre “For Everything”, primeira faixa de When I Have Fears (2019);  e tema que ressurge no novo Gigi’s Recovery.

Passados quatro anos, a banda está de volta com Gigi’s Recovery para enfrentar o desafio de recuperar o brilho perdido pela longa e incomum ausência para uma grupo iniciante. Entre fichas colocadas sobre a mesa que apostavam que eles (em especial o vocalista) não se recuperariam das ranhuras provocadas pela exposição de corpo e alma no disco de estreia, somado ao desgaste psicológico do isolamento da pandemia, e o perigo e de uma nova jornada adentro de si, o segundo álbum do quinteto irlandês revela-se uma vitória da Arte sobre os escuros comumente abatem quem insiste em observar os abismos da alma. Cantar sobre temas como ansiedade, solidão, dor, morte e perda é fácil. Difícil é cantar sobre tudo isso a partir de experiências pessoais.

Seguindo por esse trajeto, McGovern mais uma vez deixa claro que não menos densa será a jornada através de suas letras de tom poético, questionamentos filosóficos, e que não se furtam em abordar temas dolorosos. O amor? Bem, se é como já dito por alguém que toda a música Pop é construída sobre ele, o The Murder Capital estreou desafiando a regra. Embora se possa fazer uma leitura mais ampla, de que o Amor aqui esteja nas entrelinhas de cada palavra, cada verso repleto de desilusão das canções. “Na chuva, o romance jaz”, cantou o vocalista na finalização do disco, em “Love, Love Love”. A palavra surge de forma tão enfática no título quanto questionadora e pela única vez ao longo do trabalho. Encerramento do disco anterior, a faixa pode parecer uma ode, mas é um canto de despedida, de fim.

Se esse sentimento de desesperança era o que escorria antes, aqui há o vislumbre do “palpável”, da possibilidade, em alguns momentos: “Eu te amo, você sabe disso / Meu sentimento é de pertencimento…Lá na luz nós ficaremos / Lá na luz nós viremos e brincaremos juntos / Lá na luz nós estaremos / Eu ficarei baby” (“Belonging”); “Mostre-me como pensar apenas em coisas boas, apenas em coisas boas” (“Only Good Things”).

Ao mesmo tempo, o tema estrelas é retomado em “The Stars Will Leave Their Stage”. Sobre uma arranjo base que vai se avolumando, a letra reflete sobre finitude e a marcha inexorável do tempo sobre a existência: “Nós mentimos para manter vivo o segredo / Para manter o passado no lugar… A noite queimará sua cera e pavio / As estrelas deixarão seu palco”; e está presente também em “The Lie Becomes The Self”: “Lá na luz das estrelas da sarjeta nos encontramos completos”. O paradoxo entre desejo/negação e possibilidade/impossibilidade se faz presente em uma boa parte das letras de Gigi’s Recovery. Ao mesmo tempo, musicalmente, é um trabalho mais diversificado, menos eufórico, e mais denso.

Diminuindo o elemento catalisador dessa euforia, a opção do The Murder Capital é em se concentrar em arranjos em que as guitarras perdem seu protagonismo para serem coadjuvantes não menos interessantes, ainda que canções como “Crying” e “Return my Head” preservem algo dessa aura. A primeira, sobre solidão, prisão interior e a exasperada necessidade de um amigo, e é coberta de efeitos atordoantes; “Turn My Head” é sobre o risco de insanidade por causa do isolamento provocado pela pandemia. Antes disso, na abertura, com a spoken word “Existence”, o vocalista demonstra sua afeição por frases iniciais poderosas: “Estou lidando com um sentimento estranho / Não posso admitir que perdi o controle / Naquela manhã pensei em pular este dia para sempre”.

No mais das vezes James canta como um crooner de sentimentos amargos, noutros sobre a possibilidade de recuperação, daí se pode aferir o título do álbum. Nos momentos mais compassados, a banda pinta uma paisagem soturna, encontrável em poucas bandas da atualidade, tamanha a densidade do texto expresso nas letras. Tudo aqui é coberto com uma persistente camada de melancolia – até nos momentos mais “luminosos” -, sua presença é mais forte em faixas como “Ethel”, “The Lie Becomes Thes Self” e “Gigi’s Recovery”.

+++ Leia a crítica de ‘A Hero’s Death”, do Fontaines D.C.

A finalização é no mesmo tom inicial, mas com uma mensagem diferente. No início a existência estava sumindo (“Existence”), no fim ele está mudando (“Exist”). E mudança/recuperação (redenção através da dor), são os grandes temas explorados pelo The Murder Capital em Gigi’s Recovery.


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Ano | Selo: 2023 | Human Season Records
Faixas | Duração: 12 | 42:15
Produtor: John Congleton
Destaques: “Crying”, “The Lies Becomes the Self”, “A Thousand Lives” e “Gigi’s Recovery”
Pode agradar fãs de: Fontaines D.C, Dry Cleaning

 

 

 


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